YARIPO: O CÉU QUE NOS PROTEGE
No extremo norte da Amazônia, na região do Alto Rio Negro, fronteira do Brasil com a Venezuela, encontra-se o ponto culminante do país – o Pico da Neblina. Com 2.994 metros de altitude, a área faz parte do Município de Santa Isabel do Rio Negro, mas é acessada por São Gabriel da Cachoeira/AM, a cidade mais próxima.
Esse cume com forma piramidal e pontiaguda faz parte de um maciço que integra o território tradicional Yanomami, povo indígena que habita essa região, e que o chama de Yaripo ou “serra dos ventos e das tempestades”, em uma tradução aproximada.
Essas montanhas foram “descobertas” pelos näpe (como os Yanomami se referem aos “não índios”) por volta de 1950. Mas foi somente na década seguinte que se demarcou essa parte da fronteira, confirmando a localização do Pico da Neblina em território brasileiro e aferindo sua altitude, alçando-o a ponto culminante do país – título conferido até então ao Pico da Bandeira, na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais.
De difícil acesso, ocultado por outras montanhas da Serra do Imeri e quase sempre encoberto, o Pico da Neblina guarda uma aura de mistério e magia. Desde 1965, quando foi escalada pela primeira vez, essa montanha é uma conquista cobiçada por montanhistas não só brasileiros, mas do mundo todo.
Nos anos 1990 e início de 2000, várias agências passaram a organizar expedições para subir a montanha, o que começou a desagradar os Yanomami, que tem o Yaripo e outros lugares do seu território como sagrados, morada dos Xapiripë – suas divindades e espíritos guardiões –, que protegem o mundo da “queda do céu”.
Assim como o Yaripo, existem diversas montanhas no mundo consideradas especiais pelos povos nativos, tidas como territórios restritos, onde apenas pessoas preparadas dentro das suas tradições podem adentrar, sob pena de causar grandes alterações no equilíbrio do mundo e desencadear, consequentemente, severas punições.
Foto: Agência O GLOBO. |
Em meados da década de 2000, a tentativa de implementação, por parte do poder público, de infraestrutura voltada para a visitação turística na área deflagrou uma série de conflitos [1].
Na ausência de entendimentos consensuados, o caso foi judicializado e o turismo ao Pico da Neblina, suspenso.
A tensão chegou a tal ponto que em uma reunião, uma liderança indígena demonstrou o descontentamento de seu povo em um discurso acalorado, apontando uma flecha a um gestor público, em uma exemplificação dramática da hostilidade existente contra o órgão governamental responsável pela gestão da área.
Esse evento, entretanto, marcou o início de um processo que começou a modificar esse cenário. O mesmo gestor mencionado anteriormente, se despindo dos pré-conceitos e da empáfia institucional, se dispôs a dialogar e tentar compreender a realidade local vivenciada a partir do ponto de vista dos indígenas. Segundo seu relato, foi só “de calção”– sem armamento, sem colete de fiscalização e sem reforço policial – que ele se embrenhou por quase quatro anos nos rios e serras desse território, munido somente de “cara, coragem e boa vontade”.
Da união dos esforços de várias organizações resultou a formação de um conselho responsável pela gestão do território e diversas ações que, desde então, vem sendo desenvolvidas em parcerias entre indígenas, instituições públicas e da sociedade civil.
Esse novo cenário de colaboração permitiu inclusive que fosse desenvolvido um projeto para voltar a levar visitantes ao Pico da Neblina, dessa vez a partir de uma proposta de etnoturismo, protagonizada pelos próprios Yanomamis [2].
O roteiro, que está em fase de aprovação e deve ser implementado em breve, foi estabelecido de forma a respeitar as tradições indígenas e segue regras que visam proteger seus lugares sagrados e não molestar os espíritos da floresta. E ninguém sobe lá sem passar antes por um ritual de purificação com os pajés das aldeias e receber autorização espiritual para empreender tal jornada.
Uma das primeiras expedições realizada para testar o roteiro foi acompanhada de Maria Yanomami, que conquistou a façanha de ser a primeira mulher indígena a subir até o cume do Yaripo [3].
O protagonismo feminino, aliás, vem se destacando bastante na região, especialmente com a Associação Kumirayoma das Mulheres Yanomami, que em pouco tempo de organização conseguiu alavancar vários projetos importantes para as famílias.
Elas têm um papel central na proposta do etnoturismo, na produção de artesanato, na organização das expedições e no fornecimento da alimentação para os grupos, utilizando produtos tradicionais da cultura indígena, o que agrega ainda mais valor à experiência.
Histórias como essa mostram que, com abertura para o diálogo e o exercício da alteridade, é possível superar “ranços e divergências históricas” e transformar inimigos em aliados, desatando nós e criando laços em prol de objetivos em comum.
Quando interagem com o mundo dos näpe, os Yanomami constantemente chamam a atenção para o fato de que devemos reavaliar nossos padrões, questionar as ilusões que aceitamos como realidade, nos achando muito poderosos e correndo o risco de sucumbir às armadilhas dos caminhos enganosos que seguimos em prol de um suposto “desenvolvimento”.
As profecias Yanomami alertam para a importância de proteger as florestas e respeitar os seus espíritos guardiões, advertindo a humanidade do que estamos negligenciando.
Nas palavras do líder Davi Kopenawa, registradas no livro “A Queda do Céu” [4]:
"A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos Xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar".
Em um contexto político de graves ameaças aos direitos duramente conquistados pelos povos indígenas e fortes pressões sobre as áreas protegidas, que o alerta vindo das alturas celestiais do ponto culminante do Brasil, propagado pela voz dos nossos povos originários, possa ecoar pelo país, lembrando que ecologia começa de dentro e que somente com união e solidariedade poderemos alterar esse desastroso curso pelo qual segue a humanidade.
Katehe pruka Povo Yanomami!
Katehe pruka Flávio Kaipanawë, pelo exemplo, amizade e inspiração!
Érika Fernandes Pinto, 23/09/2019
Fontes:
[1] Notícia registrada no livro Povos Indígenas do Brasil de Ricardo e Ricardo (2011, p. 303), Índios contra abrigos em local sagrado. ISA, 29/01/2009.
[2] Plano de Visitação Yaripo – ecoturismo Yanomami.
[3] Registro em vídeo da Expedição Yaripo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=O-RWHj7sGCw
[4] A Queda do Céu - palavras de um xamã Yanomami. Davi Kopenawa e Bruce Albert, São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Excelente! Maravilhoso! Os xapiris estão cantando!
ResponderExcluirMuito interessantes as formas de protagonismo dos Yanomami. Fazer um ritual para que se possa escalar é realmente serem assertivos em relação às duas crenças e identidade.
ResponderExcluirExcelente! que essa sensatez impere!
ResponderExcluirTextos maravilhosos de uma forma geniosa, despertando o interesse de conhecer cada trecho desta imensidão de nosso País!
ResponderExcluirTexto muito bom sobre uma imensa e linda regiao do nosso pais, que precisa ser cuidada e guardada no coração de cada brasileiro.
ResponderExcluirMuito importante a divulgação das histórias dos realmente"donos" da terra. Com sua sabedoria inata, saoos guardiões da terra.
ResponderExcluirEm breve Parque Nacional Yaripo, em vez de Pico da Neblina? rs
ResponderExcluir