A SERRA DO CORPO SECO E A LENDA DO ZUMBI BRASILEIRO

Serra do Corpo Seco, Ituiutaba/MG


Faz tempo que quero escrever sobre um tema que muito me encanta - os personagens fantásticos que povoam o imaginário popular em diversas regiões do Brasil. Que habitam matas, mares, serras, rios ou lagos e exercem interessantes papéis na relação entre seres humanos e natureza. 

Eles incluem entidades famosas eternizadas em grandes obras da literatura como o Saci, o Lobisomem, a Mula-sem-cabeça. 
Outras menos conhecidas e quase esquecidas, como é o caso do protagonista dessa história – o Corpo Seco

Por uma dessas sincronicidades da vida, no mesmo dia que registrei na minha lista de “personagens fantásticos da natureza no Brasil” essa referência nova para mim, comecei a assistir a série Cidade Invisível (da Netflix, 2021). Uma trama policial misturada a lendas do folclore brasileiro. 

E nela, junto com a Cuca, o Saci, a Sereia e o Curupira, quem é que aparece como o grande vilão da história? 

O tal do Corpo-Seco!!! 

Assim, lá fui eu pesquisar um pouquinho sobre essa que está no rol das mais assustadoras criaturas do imaginário popular que assombra as matas brasileiras. 

E que, na minha opinião, em nível de terror, só perde para o Ataíde dos manguezais do Salgado Paraense.

Mas essa já é outra história...


O Corpo-Seco é mencionado por Luís da Câmara Cascudo - grande historiador estudioso das narrativas mitológicas nacionais - no livro Geografia dos Mitos Brasileiros (1983). 

De acordo com sua pesquisa, a lenda pode ser encontrada em vários estados brasileiros como São Paulo, Minas Gerais, Paraná́, Santa Catarina e no Nordeste. 


Ela trata de uma narrativa bastante peculiar sobre um rapaz que, amaldiçoado por ter cometido muitos pecados em vida, ao morrer é rejeitado tanto por Deus quanto pelo Diabo. 

Seu corpo ressecado não é consumido pelos vermes e ele fica preso na Terra como um espírito renegado, restando-lhe vagar por matas e campos, assustando as pessoas durante a calada da noite (Portuguez & Wolf, 2020).



O Corpo Seco é comumente descrito como uma espécie de múmia ou fantasma maléfico. Sua lenda remete a uma tradição originária da Europa - com pontos de contato entre representações de mortos-vivos em diversas culturas, desde a Antiguidade. 

E que encontrou terreno fértil na união com outras crenças brasileiras, onde assume diversas variantes regionais.


A Serra do Corpo Seco

Muitas lendas dispersas por várias regiões do Brasil encontram ancoragem em alguns territórios específicos, onde ganham contornos diferenciados. 

Foi assim que chegamos até o Morro São Vicente, no município de Ituiutaba, região sul de Minas Gerais. Local carinhosamente chamado de Serra do Corpo Seco pela população local, que acredita ter sido ali onde ele foi enterrado e de onde levantou do túmulo para cumprir a sua malograda sina. 

Essa formação geomorfológica de topo aplainado é marcante na paisagem do cerrado de Ituiutaba. 

Contam os estudiosos que lá foi território dos índios Caiapós, dizimados pelas bandeiras que adentraram o interior do Brasil no período colonial.

Para Portuguez e Wolf (2020), que estudaram a lenda à luz de áreas inovadoras da ciência - como a Geografia das Representações, a Geografia da Percepção e a Psicogeografia – ela foi trazida para o Brasil pelos portugueses. 


Está relacionada aos processos de ocupação e formação territorial do município, infundindo uma representação simbólica da cosmovisão cristã na paisagem. 


Ao mobilizar sentidos e percepções através do medo, ela teria contribuído para legitimar um sistema de regras morais que atuavam também como forma de controle social.

Em Ituiutaba conta-se que o Corpo Seco foi um rapaz que judiava muito da mãe e por isso foi amaldiçoado. 

Sina semelhante acometeu outro jovem nos Campos de Cima da Serra, que se transformou no Gritador, entidade igualmente assustadora. 

Na Pedra Branca, município de Dois Córregos/SP ele é chamado de Unhudo

A lenda do Corpo Seco foi mapeada por Leite (2019) em mais de 25 municípios brasileiros, registrando um pouco da abrangência territorial do mito. 

E encontramos referências na paisagem a essa forma amedrontadora também em Piraí do Sul/PR, onde existe o Morro do Corpo Seco.


Em épocas mais recentes, a Serra do Corpo Seco de Ituiutaba se tornou reduto de práticas de camping e esportes de natureza, de estudos científicos, de manifestações religiosas cristãs e afrobrasileiras e de muitas histórias. 

Muitos acreditam que ela pode ser um elemento impulsionador do turismo na região.

E tanto a lenda como o morro são indicados como patrimônio cultural imaterial e material do município. 


O zumbi brasileiro

Antes de ser personagem de série internacional, Corpo Seco foi tema de livros, quadrinhos e até um filme, sendo popularizado como “o zumbi brasileiro”. 





Mas foi com Cidade Invisível que a lenda saiu do território nacional e ganhou fama mundial. 

A primeira temporada da série (com sete episódios) rapidamente se tornou a Top 1 da plataforma da Netflix - não apenas no Brasil mas, surpreendentemente, também nos EUA. 



A trama é ambientada no Rio de Janeiro e envolve uma história de conflitos pela posse de terras entre uma grande empresa e uma pequena comunidade tradicional de pescadores (alguém já viu esse filme?). 

Os seres encantados, expulsos das matas e da natureza, vivem à margem da sociedade, disfarçados. 

E ainda que o enredo de suspense não seja lá tão empolgante e careça de aprofundamento e algumas explicações básicas sobre os personagens lendários, a produção tem vários méritos.

Por um lado, ela reflete uma perspectiva adulta desse universo em grande parte restrito a obras voltadas ao público infantil. 

Também traz para o contexto urbano de uma grande metrópole lendas que são comumente retratadas como algo “do interior”. 

E em meio ao cenário moderno de desconhecimento e desvalorização das nossas tradições orais, explora o desafio dos protagonistas em lidar com o próprio ceticismo e compreender que a floresta não existe sem os seres encantados que a habitam. 

O sucesso da série também nos mostra que essa temática, tantas vezes relegada ao campo do alegórico, pode ajudar a despertar o interesse da sociedade para questões socioambientais. Lembrando a importância do lúdico na conscientização e sensibilização para a proteção da natureza. 


Que sigam vivas as nossas florestas e as lendas sobre os seres que as protegem!

 

Érika Fernandes Pinto, 10/03/2021.



E você, já ouviu alguma história do Corpo-Seco ou outra criatura assustadora na sua região? 

Conhece outros lugares como esse, envoltos em lendas e mistérios?

Que outras histórias gostaria de ver postadas aqui?


Conte aqui nos comentários. 

Vou adorar receber seu feedback!


Obs. Além do Corpo Seco, que representa a perdição da alma, existe também em algumas regiões do Brasil o Corpo Santo, seu oposto. Um ser que não apodrece depois da morte pelas suas virtudes em vida. 

Mas essa também já é outra história...



Fontes e referências:

Imagem do Corpo Seco: https://www.facebook.com/OrgulhoSP/posts/a-lenda-do-corpo-secomorador-da-cidade-de-monteiro-lobato-contam-os-antigos-que-/1317240574962755/

Imagem da Serra do Corpo Seco: http://cabanaterror.blogspot.com/2017/03/corpo-seco-unhudo.html

Veja algumas versões da lenda em http://ocalafrio.blogspot.com/2013/06/a-lenda-do-corpo-seco.html

Portuguez e Wolf, 2020. Serra do corpo-seco, Ituiutaba-MG: o lugar, a assombração e o mito popular a partir da geografia das representações. Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 1, p.1421-1475 jan. 2020. https://www.brazilianjournals.com/index.php/BRJD/article/view/6020/5359

GUARALDO, Tamara de Souza Brandão. Comunicação, cultura e mídia: o mito do Unhudo da Pedra Branca. 2005. 215 f. : 1 CD-ROM. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, 2005. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/89401>.

Katrib, 2013. Patrimônio cultural: as ações de salvaguarda em Ituiutaba, no Pontal do Triângulo Mineiro.


 

Comentários

  1. Texto maravilhoso!
    Não conhecia o corpo seco, nem o corpo santo.
    Lembrei do chupa cabra e do ET de Varginha pelo mistério apresentado no texto.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Rubens, grata por sua mensagem.

      O Corpo Seco, o Corpo Santo, o Boitatá, a Iara, o Saci, o Curupira e tantas outras criaturas fantásticas da natureza diferem um pouco de categoria do Chupa Cabra e do ET de Varginha.

      Enquanto os últimos seriam "extraterrestres", os primeiros são considerados legítimos habitantes naturais e nativos das florestas, mares, rios e campos.

      Mas ambas categorias podem estar associadas a lugares específicos da paisagem conformando o que chamamos de sítios naturais sagrados.

      Você sabia que no Mato Grosso tem um parque dos ETs? Com direito a discoporto e tudo?
      (Dá uma olhada em https://snsbrasil.blogspot.com/2020/02/a-enigmatica-serra-do-roncador-e-o.html)

      Excluir
  2. Já escutei falar que depois que chega a luz e a cidade cresce, muita "coisa" desaparece.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá.

      Uma vez eu estava conversando sobre esse assunto com um senhor já bem idoso da ilha do Superagui/Guaraqueçaba/PR e falávamos do Curupira.

      Quando perguntei o que tinha acontecido com ele, se ainda andava por ali, o senhor falou que o curupira tinha "se mudado" para lugares mais distantes e longe da bagunça humana.

      Parece que as lendas não desaparecem, mas às vezes elas se mudam...

      Excluir
  3. Adorei!! Não sabia da existência da lenda do Corpo Seco!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Dayane, grata por seu comentário.

      O Brasil é de uma riqueza inestimável de histórias relacionadas com a natureza, uma mais legal que a outra.
      E infelizmente a gente aprende cada vez menos sobre isso...
      Esse trabalho é parte de um esforço para resgatar e valorizar essa dimensão da relação sociedade e natureza.
      Junte-se ao time!!!

      Excluir
  4. Adorei. Brilhante narrativa que nos remete ao encantado, ao nosso folclore e lendas.
    Ligeiro ver a série...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ligeiro ver ...
      E se encontrar outras séries, filmes, documentários, etc. que abordem a temática, não esqueça de nos mandar a dica!!!
      Obrigada

      Excluir
  5. E vamos todos conhecer a serra do corpo seco. Quem sabe a gente encontre um zumbi por la...

    ResponderExcluir
  6. Olá
    Muito lindo seu trabalho Erika,vamos conhecendo o Brasil com você..
    Gratidão

    ResponderExcluir

Postar um comentário