O MORRO DO CHAPÉU E OS TESOUROS DO SERTÃO


Encravado no coração do Brasil, no sul do Estado do Maranhão, uma paisagem singular se descortina para quem cruza a BR 230, entre os municípios de Estreito e Carolina. Ainda pouco conhecida no cenário turístico nacional, a Chapada das Mesas, chamada pela alcunha de “pérola do sertão”, guarda tesouros naturais belíssimos e exemplos de força e resistência cultural.
Em meio a estradas sinuosas de terra vermelha e a vegetação rústica de transição entre os biomas cerrado, caatinga e floresta amazônica, centenas de formações montanhosas de formas peculiares despontam no horizonte. Chamadas de mesas ou mesetas, são testemunhos de um passado geológico de milhões de anos, resultado da erosão das rochas areníticas.
Cachoeira São Romão - Fonte ICMBio
Compõem o cenário paradisíaco grutas, cânions, veredas de buritis, nascentes, rios e belíssimas cachoeiras de águas cristalinas e temperatura agradável, que contrastam com as areias coloridas e as flores das margens em um espetáculo de diversos matizes.

Em meio a esse exuberante mosaico, destaca-se com uma forte presença na paisagem o Morro do Chapéu, a mais emblemática das cerca de 500 mesetas da chapada e seu ponto culminante. 
Relacionado a mitos de criação indígenas e fenômenos ufológicos, a visão panorâmica do alto dos 378 metros do cume plano faz valer a subida íngreme em meio a valas abertas pelas chuvas e pedras soltas.
Permeando essas belas criações da natureza encontra-se um povo simples e acolhedor, herdeiros do modo de vida sertanejo e indígena, que com sua culinária típica saborosa, formas peculiares de arquitetura rústica e produção agroextrativista desenvolveram formas próprias de fazer sua leitura do mundo e da natureza local.
Como lindamente cantado por João do Vale, na música “O Segredo do Sertanejo”, somente quem vive naquele chão sabe que “quando o ouricuri madura, é sinal que a arapuá já fez mel; quando a catingueira flora, vai cair chuva a granel”. E ainda que sem estudo, lá tem homens e mulheres capazes de saber de tudo!
Em contraposição a uma forma de ocupação territorial que se mescla à paisagem natural, no entanto, existe a preocupação com a rápida expansão do agronegócio e a avassaladora substituição das paisagens naturais por monocultura de soja e pasto para gado, que já reduziu o cerrado brasileiro a menos de 20% da sua cobertura original. 
Além disso, quem se encanta com as belezas da região, muitas vezes nem imagina a saga que os habitantes ancestrais desse território viveram no processo de interiorização da colonização no país. 
Os Timbira - nome que agrega um conjunto de povos que se reconhecem como “parentes” ou mehin (Krahô, Apinajé, Krikati, Gavião e Kanela) - resistiram durante anos à ocupação dos kupen, como se referem aos não índios. 
Grandes batalhas foram travadas até a completa expulsão dos indígenas do território pelas frentes agropastoris, quando os sobreviventes atravessaram o Rio Tocantins e se dispersaram por outros territórios, ao leste do Pará e norte do Tocantins.
No movimento de limpar a terra dos seus “indesejados habitantes”, se negava aos índios a própria condição humana, o que justificava a promoção de massacres em massa, incluindo mulheres e crianças. 
Dentre as estratégias utilizadas pelos colonizadores para se apossar do território estavam espalhar doenças contagiosas entre eles propositadamente e fazer falsas promessas e alianças, fomentando guerras intertribais, para em seguida trair e aniquilar os aliados de véspera.
Ainda que praticamente apagados da memória da região, sua herança cultural, no entanto, se manteve e se faz presente de diversas formas. 
Fonte: Instituto Socioambiental
Alguns elementos que caracterizam a “timbiridade” são o estilo do corte de cabelo (com um sulco interrompido); o uso de grandes discos (batoques) distendendo o lóbulo da orelha, principalmente entre os homens; o formato circular das suas aldeias, que se parecem com belas mandalas; o gosto pelas corridas de tora (seu esporte favorito), pela farinha de puba e pelos amji’kin- festas relacionadas com as noções de bem estar e felicidade.
Os Timbira mantiveram o Morro do Chapéu como referência de seu lugar sagrado de origem e símbolo de uma resistência heroica secular. Contam que nas suas proximidades existiu Wokran ou Hookrã, a maior aldeia Krahô, em um local ainda marcado por um círculo de jatobás e outras árvores frutíferas. 
E para ali os Timbira retornaram, em tempos mais recentes, com criação da Associação Indígena Wyty-Catë, que significa “casa que recebe a todos com fartura”. 
Ainda que suas aldeias na atualidade sejam distantes, eles vêm produzindo na região um movimento de reterritorialização em rede. Vão e voltam, ressignificando seus elos com esse território que é o sustentáculo da sua memória coletiva.

Quando o avanço do agronegócio parecia conspirar para um destino trágico da “pérola do sertão”, os Timbira, mostrando uma incrível capacidade de reinventar a própria história, desenvolveram, em parceria com outras organizações, um projeto inovador de manejo de frutos nativos do cerrado e de implantação de uma indústria de beneficiamento de polpas chamada Frutasã, que virou uma referência nacional. 
Construíram também o Centro de Ensino e Pesquisa Timbira Pinxyj Himpèjxà, um espaço de encontro, articulação e formação continuada direcionada para a valorização da cultura indígena.  Fazem viveiros de mudas, replantam em áreas degradadas, ensinam os jovens e formam agentes agroflorestais. Superaram inimizades ancestrais para promover “uma aliança para manter o mundo vivo e o cerrado em pé”. 
Quando questionados sobre seus projetos e se eles estão dando certo, prontamente respondem que “para os índios sim, mas para os kupen não!”, pois esses já deveriam ter aprendido com os seus erros e parado com a destruição da própria casa [3].
Alguns kupen, no entanto, sensíveis a essa questão, se uniram para propor a criação de uma área protegida na região, iniciativa que teve êxito em 2005, com o decreto de um parque com 160 mil hectares. 
Um processo que inclui algumas polêmicas, mas que tem atraído novos habitantes e visitantes interessados em desenvolver o ecoturismo, um grande potencial para a região. 
Assim, ainda que muitas pressões tenham conspirado historicamente contra os povos tradicionais e a natureza da região, várias iniciativas vêm contribuindo para dissolver oposições entre os grupos sociais que permeiam esse território, abrindo caminho para uma nova compreensão sobre como a solidariedade pode conformar uma força de transformação poderosa. 
As paisagens e a diversidade cultural que compõem a base identitária desse território vasto e heterogêneo necessitam de tempo para serem reconhecidas e valorizadas. 
Faço votos de que, como lembrado pela minha comadre Ana Rosa, o “lamento dos sertanejos” [4] e dos Timbira, seja ouvido e que mais pessoas possam se unir pela proteção dos maiores tesouros da Chapada das Mesas – suas paisagens, sua fauna, seus frutos, suas águas e suas gentes, com seus cantos e seus encantos!

Obrigada sertanejos da Chapada das Mesas!

IMPEJ Nação Timbira!


Érika Fernandes Pinto
Brasília, 30 de setembro de 2019

Um agradecimento especial à colega Ana Rosa Marques - cujo belíssimo estudo nos permite mergulhar não só nas explicações científicas sobre a geografia física e cultural da Chapada das Mesas, mas também na sua poética. 

E ao colega Jaime Siqueira, “o antropólogo que virou suco”, como ele mesmo relata, em função do ativismo e envolvimento na causa que permeou seu trabalho de pesquisa junto aos Timbira. 

Considero esses dois colegas belos exemplos de como o trabalho acadêmico e técnico comprometido com as causas socioambientais pode promover transformações positivas tanto em quem pesquisa como em quem é pesquisado. 

Fontes: 
[1] Tese de Doutorado de Ana Rosa Marques, 2012. Saberes geográficos integrados aos estudos territoriais sob a ótica da implantação do Parque Nacional da Chapada das Mesas, sertão de Carolina – MA. UNESP.
[2] Tese de Doutorado de Jaime Siqueira Júnior, 2017. Wyty-Catë: cultura e política de um movimento pan-Timbira. Universidade de Brasília.
[4] Referência à música de Dominguinhos, Lamento do Sertanejo. 

Comentários

  1. Belo! Belíssimo! Muita emoção em ler este texto escrito com muito respeito aos povos originários da Chapada das Mesas, e as populações sertanejas que lá habitam. Grata

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  2. ÉRica, amei seu texto. A tempos venho chamando atenção pela escrita correta sobre o conto do morro do chapéu. Falar do Morro do Chapéu e não falar dos Timbiras é não contar a história certa.
    Grata pela força a resistência.

    Herly

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  3. Uau! Uau! Meus parabéns de novo!
    Me esclareça: eles poderão morar num Parque Nacional? Ou eles já estavam fora na criação?

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  4. Oi Érica! Gostei muito dessa materia sobre a Chapada das Mesas, no município de Carolina- Ma.. Pois, nasci em sua divisa com o Tocantins e conheco aquele morro desde que nasci. Grande abraco!
    Abrahão José-Flor de Cristo( Igreja).

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