O VALE DO PERUAÇU E A HISTÓRIA DO RIO QUE SECOU QUANDO A REZA ACABOU



No norte de Minas Gerais, entre os municípios de Januária e Itacarambi, a aridez da paisagem que marca a transição entre o bioma Cerrado e a Caatinga revela, a quem se dispõem a adentrar pelos meandros do Vale do Rio Peruaçu, cenários de grande beleza natural. 

E também um valioso patrimônio geológico e arqueológico

O Rio Peruaçu é um dos afluentes do São Francisco. 
Teve seu curso natural fechado por um maciço de rochas calcárias e a ação erosiva das águas ao longo do tempo foi ali esculpindo centenas de cavidades naturais
Muitas delas contendo sítios de arte rupestre pré-histórica e outros relictos, conformando um incrível complexo de cavernas, em grande parte ainda desconhecido.

Mas essas não são as únicas riquezas da área. 

A região é habitada por diversos grupos tradicionais com modos de vida próprios e adaptados a esses ambientes., que revelam uma grande diversidade cultural. 

Com agricultores familiares, sertanejos, vazanteiros, veredeiros, catingueiros, coletores de flores, quilombolas e indígenas. 

Na margem esquerda do cânion do Rio Peruaçu, no alto de uma encosta íngreme, fica a denominada Lapa do Rezar

O percurso de alguns quilômetros de caminhada por trilha em meio a mata seca para lá chegar, restaurado a partir de um trajeto histórico, inclui a subida de mais de 500 degraus de madeira.

Seu salão de entrada, de formato ovalado, é amplo e imponente, medindo cerca de 70 metros de largura por 50 de altura. 
Uma pedra na entrada da caverna assemelha-se a um altar e ali eventualmente são colocadas velas e outros objetos de devoção. 

A Lapa do Rezar recebeu esse nome porque está associada a uma antiga tradição do catolicismo popular praticado pelos moradores da região. 

No auge do período de seca, como parte das festividades da novena em homenagem a Nossa Senhora da Conceição (celebrada no dia 8 de dezembro), era costume, principalmente entre as mulheres, caminhar até a entrada dessa gruta em oração, entoando cantos e carregando pedras ou latas de água na cabeça. 

Esse ato - que simbolizava fé, sacrifício e devoção - fazia parte de um rito religioso em clamor pela volta das chuvas, marcando o fim do período de seca, que costuma ser intenso na região.

Como as pessoas que por ali vivem afirmam - e estudos confirmam -, está ocorrendo uma drástica redução do nível do lençol freático na região, especialmente na última década. E em boa parte do seu curso, o Rio Peruaçu permanece completamente seco, mesmo na temporada das chuvas. 

Em outubro de 2018, quando lá estive a realizar um trabalho na região, uma colega apresentou o rio. 
Ao passarmos por uma ponte sobre o seu leito lançou a seguinte afirmação: “esse é o falecido Rio Peruaçu”! 

Locais onde o espelho d’água tinha mais de 400 metros hoje resumem-se a pequenos filetes de água, impactando os ecossistemas e as comunidades.

O quanto disso é causado por um processo natural de modificação evolutiva da paisagem e o quanto é resultado da ação antrópica, não se sabe estimar. 

Mas para quem, com eu e meus colegas de expedição, chegou até lá percorrendo as estradas do interior dos estados de Goiás e Minas Gerais, as causas da calamidade ambiental são beeeem visíveis ao longo do caminho. 
Quase inteiramente formado por eucaliptais, grandes plantações de monoculturas irrigadas e pastos improdutivos. 

Nos aproximar dos territórios tradicionais e das áreas protegidas do Vale do Peruaçu - depois de horas circulando em estradas nas quais não se avista sequer uma mancha de vegetação nativa - é como entrar em um oásis. 
Um pequeno oásis, diga-se de passagem, mas que guarda uma significativa parcela de um dos biomas mais ameaçados do Brasil

Aproveitamos um fim de tarde para fazer uma breve visita à Lapa do Rezar. 

Nosso condutor local contou que a tradição religiosa de peregrinação à essa caverna foi em grande parte abandonada, há mais de uma década. Devido a mudanças culturais das próprias comunidades, com a adesão de muitos moradores a religiosidades neopentecostais. 

Refletindo sobre a problemática da intensificação da escassez hídrica na região - e emocionado ao relembrar da alegria das festas tradicionais - , ele ponderou: "pois é, acabou a tradição, acabou a reza. E não é que diminuiu a chuva e o rio secou?".

Coincidência ou não, ainda que apenas rezar não vá modificar a crítica situação da região, relembrar as tradições que faziam as pessoas se juntarem em prol do cuidado com a natureza poderia ajudar. 
Pois é somente com a convergência de parcerias e iniciativas visando o manejo adequado de recursos naturais e a conservação dos seus recursos hídricos que o Vale do Rio Peruaçu poderá ser restaurado. 
Como reforça o lema adotado da região “Peruaçu vivo! Terra! Água! Rio e Povo!”. 
Acreditamos que valorizar os laços culturais e os vínculos de pertencimento das populações locais com os territórios que elas habitam é uma das melhores iniciativas que podem auxiliar a defender esse espaço vital. 
E protegê-lo das grandes ameaças externas, que se aproximam por várias frentes. E que se mostram muito mais impactantes e destruidoras do que as práticas tradicionais conseguem alcançar.
Rezemos então, na Lapa do Rezar e em tantos outros lugares sagrados do nosso Brasil, para que a integração de políticas de conservação e direitos dos povos e comunidades tradicionais possa vingar. 
Obrigada

Meu agradecimento especial ao povo simpático e hospitaleiro do Vale do Peruaçu e aos companheiros de aventura Marcelo, Roberta e Dayanne. 
Érika Fernandes Pinto - 12/09/2019




Comentários

  1. Salve! Estou acompanhando está excelente série

    Os sítios sagrados do Brasil

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  2. A tradição da reza envolvia os moradores nos cuidados com o rio . Sensaçao de pertencimento..

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  3. Gostei muito, história linda, isso faz parte do meu sertão..

    Peruaçu Lugar especial espriritualmente sagrado , lugar esse guarda os registros da pegada do antepassado.

    Os esperitos moram nas cavernas, e cuida desses espaços sagrados, vamos continuar rezando que as

    chuvas vão voltar os rios vão volta correr, precisamos de ter fé, respeito aos espíritos da Mata os encantados e os guardiões do Rio Peruaçu..

    Joe Cavernas

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    1. Obrigada por suas lindas palavras Joe. Salve o Rio Peruaçu e todos os seus encantos e encantados!

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  4. Lindo e triste que perdemos o encantamento das graças da vida

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  5. Já vi as Festas de São Gonçalo, dos Reis, de São João e sua Quadrilha em Januária. Mas estão se acabando e agora difícil de ver... Assim como vários riachos (inclusive o Peruaçu) de seus arredores e o Velho Chico. Todos merecem ser amados, adorados, reverenciados... Hoje!!!
    Tratá-los como sagrados, é dar seu real lugar na Vida.
    Deles. vêm a Vida na Terra.

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  6. É triste ler esse depoimento é ver que as coisas náo andam bem por aí , eu sempre escutei boas histórias desse lugar , é fiquei com enorme vontade de conhecer , eu como viajante espero que tudo volte a ser como era antes , assim posso visitar esse local tão lindo , é passar para os amigos a boa impressão que eu tive do lugar . assim posso alavancar o turismo na regão , incentivar as pessoas conhecerem também , como já fiz em outros lugares .Fico aqui na esperança que tudo vai dar certo . é vou Rezar pelo Rio .

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    1. O lugar continua lindo, Gastão. E quando as pessoas que visitam a região são sensíveis à importância que ele tem, a conservação da natureza e os povos do cerrado conquistam importantes aliados. A responsabilidade, no final das contas, é de todos nós! Rezemos pelos rios do nosso planeta e tomemos atitudes concretas nas vidas que contribuam com a mudança desse cenário de degradação ambiental planetário.

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