HORIZONTES DO MONTE RORAIMA: DO "MUNDO PERDIDO" AO "CORAÇÃO DO MUNDO"



Na isolada região da fronteira do Brasil com a Guiana e a Venezuela, em meio a uma ampla planície de campos e savanas, ergue-se na paisagem uma gigantesca muralha de pedra que se eleva acima das nuvens, aparentemente inacessível – o Monte Roraima.

Uma das formações geológicas mais antigas da Terra, o topo dessa montanha conforma um imenso platô. 

Com 2.875 metros, em meio a pedras e cristais, são encontradas espécies de plantas e animais únicas no planeta. 

A beleza cênica dessa região e o exotismo da paisagem têm atraído exploradores, aventureiros e pesquisadores desde a época colonial e despertado, na contemporaneidade, um crescente interesse turístico de grupos que buscam desvendar os mistérios de um mundo perdido no tempo e no espaço.

Mas para os povos indígenas que habitam a região, o Monte Roraima possui um profundo significado simbólico, associado a valores culturais e espirituais essenciais para a afirmação de sua identidade e para a conformação do seu território. 

Nela se encontram arraigados mitos e histórias da criação do planeta e da origem de todos os elementos da natureza, além dos espíritos de seus ancestrais.

Suas lendas narram que, no princípio da história do mundo, uma imensa árvore produzia todos os frutos existentes na Terra – a Árvore da Vida

Mas como consequência da cobiça e do desrespeito por parte dos seres humanos, ela foi cortada. 

Sua copa, então, se espalhou pelo solo dando origem às exuberantes florestas que afloram de um dos lados da planície. 

E o tronco decepado se transformou na montanha de pedra.

Suas lágrimas pela violação ocorrida no passado ainda vertem pelas encostas escarpadas formando belas cachoeiras. 

Dessas águas se originam grandes rios que se propagam pelo continente. São consideradas pelos indígenas o sangue do planeta (2). 

Para o Povo Ingarikó, habitantes tradicionais da região no lado brasileiro, o Monte Roraima (chamado por eles de Loraima) é uma serra sagrada. 

Faz parte do território denominado por eles "Terra de Shîikë". 

Representa o Coração do Mundo e a morada de Makunaíma, filho do sol e da lua, guardião das rochas onde está registrada a história desse povo originário. 

E onde repousam, transformados em cristais, os espíritos dos seus ancestrais.

Tive a oportunidade de subir o Monte Roraima e caminhar alguns dias pelo seu platô há mais de uma década atrás, em uma viagem pela Venezuela (3). 

Ainda que naquela época eu não soubesse nada sobre sítios sagrados nem fosse muito ligada em assuntos espirituais, a incrível energia do lugar não me passou desapercebida. 

Ela é tão forte e diferente que se faz perceptível ao mais cético dos céticos! Só quem já esteve lá pode conferir... 

Um mundo verdadeiramente encantado se descortina em meio à neblina constantemente presente, o que confere uma aura ainda mais misteriosa ao cenário surreal. 


Em 2011, voltei à região do Monte Roraima, só que dessa vez na sua base. 

Para participar de uma assembléia do COPING - o Conselho do Povo Indígena Ingarikó. 

Eles vivem na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, um dos casos mais longo e polêmico de demarcação de áreas indígenas no país.

E havia um conflito por conta da sobreposição dessa área com um parque nacional, uma unidade de conservação de proteção integral.

Fui lá para entender o conflito e tentar chegar em alguma proposta de conciliação dos interesses entre indígenas e órgãos ambientais. 

Pois não é que a principal demanda dos Ingarikó estava justamente em defender a proteção das suas serras sagradas existentes dentro do parque? 

Eles não queriam que o governo atraísse milhares de turistas para essas áreas especiais sem cuidado, como eles vêem acontecer com a visitação do Monte Roraima a partir da Venezuela. 

Algumas iniciativas e estratégias foram pactuadas. Entre elas mapear os lugares sagrados para os Ingarikó localizados dentro do parque e propor regras especiais para o acesso e a proteção dessas áreas. 

E foi assim que eu comecei a estudar e descobri o debate internacional sobre sacred natural sites and protected areas.
 
Mas a experiência de (con)viver alguns dias com esse povo indígena - que em sua simplicidade tem uma dignidade e uma generosidade ímpar - foi especial por muito mais do que isso. 

Foi um momento chave de transformação na minha trajetória profissional e pessoal. 

Considero que foi lá, em meio às vivências com os Ingarikó, que realmente "despertei" para uma compreensão mais profunda da relação de sacralidade da natureza que permeia a cosmovisão indígena. 

E que deveria, diga-se de passagem, permear a de todos nós!!!

Isso não apenas como um entendimento racional - algo que eu até já tinha. Mas como algo, digamos assim, visceral. 

Que acabou por tomar conta também do meu ser, embalada pelos cantos e danças do Areruya - o ritual espiritual dos Ingarikó - e pelas muitas cuias de caxiri. 

Com lágrimas nos olhos me despedi desse lugar especial. 

Dizendo até logo ao Monte Roraima e pedindo permissão para conhecer os seus mistérios, magia e segredos. 

O piloto do avião que nos transportava nos ofereceu então um presente, circundando o Monte Roraima e fechando a nossa viagem com uma chave de ouro - uma magnífica visão panorâmica dessa montanha que passei a compreender como sagrada. 

E que passou a inspirar os passos da minha jornada, marcando o início da minha aventura em descobrir e proteger os Sítios Naturais Sagrados do Brasil.


WAKÎPE KURUMAN 
("vários obrigados", na língua Ingarikó)

Érika Fernandes-Pinto, 09/09/2019


Para saber mais: 

Tese de Doutorado - Fernandes-Pinto, 2017. Sítios Naturais Sagrados do Brasil: inspirações para o reencantamento das áreas protegidas. Disponível em: <https://goo.gl/ZNCE11>. 

Artigo - Fernandes-Pinto & Irving, 2015. Valores Culturais e Espirituais do Parque Nacional do Monte Roraima: um horizonte inexplorado. Anais do CONINTER. Disponível em :<https://www.academia.edu/34846155/VALORES_CULTURAIS_E_ESPIRITUAIS_DO_PARQUE_NACIONAL_DO_MONTE_RORAIMA_RR_UM_HORIZONTE_INEXPLORADO>


[1]Uma referência à obra literária de Arthur Conan Doyle, The Lost World, de 1912, inspirada nas narrativas dos primeiros exploradores europeus que adentraram essa região e que marca o imaginário popular a ela associado até a contemporaneidade. 
[2]Adaptação da autora com base na Lenda de Macunaima transcrita por Reis (2006) e no Mito da Árvore da Vida, segundo Mlynarz et al.(2008).

[3] O acesso ao topo do Monte Roraima é feito a partir da comunidade Paraitepuy, em Santa Elena do Uairén, na Venezuela. 

Comentários

  1. Texto Maravilhoso. Muito bem escrito e altamente motivador.

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  2. Adentramos o tempo onde a conservação da natureza se dará a partir do sentimento humano, de sua conexão íntima com ela. E nisso os povos originários são mestres! Belo artigo!

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    1. Conservação com coração! É isso aí. No cenário internacional essa já é a linha mestra. Estamos atrasados no Brasil. Bom poder contar com mais pessoas sensíveis à causa.

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  3. Thank you Erika for such a great introduction to Sacred Sites in Brazil and Venezuela. My hope is that Monta Rorima will be an inspiration to outsiders of the need to understand an respect native peoples' views and beliefs regarding sacred natural sites, which are part of their homelands. Monte Roraima is indeed a special place, and I look forward to reading and learning about the other 20 sacred sites in the region that you have been working on.

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  4. Magnífica experiência e culto ao sagrado! Parabéns pelo trabalho de pesquisa.

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