A GRUTA SANTA NO MORRO ARAÇOIABA E AS HISTÓRIAS MAL CONTADAS DA FLORESTA NACIONAL DE IPANEMA/SP

Vista do Morro Araçoiaba a partir da Floresta nacional de Ipanema.

No interior do Estado de São Paulo, próximo a Sorocaba, destaca-se na paisagem o Morro Araçoiaba - também conhecido como Morro de Ipanema, em referência a uma antiga fazenda da região. 
Com altitudes que variam de 550 a 970 metros, guarda fragmentos florestais ainda bem preservados e uma rica diversidade mineral no solo. Para proteger essa área, em 1992 foi criada a Floresta Nacional de Ipanema.
Essa região foi habitada ancestralmente pelos Tupiniquins, e daí deriva o nome Araçoiaba, que na língua indígena significa esconderijo do sol
Os primeiros colonizadores que percorreram a área vieram em busca de ouro, pedras preciosas e indígenas para servirem como escravos. A expedição comandada por Afonso Sardinha, no final do século 16, encontrou jazidas de minério de ferro na região. 
Em decorrência desse achado, em 1589 foram instalados dois fornos para exploração do minério. Essa iniciativa foi reconhecida pela Associação Mundial de Produtores de Aço como a primeira tentativa de fabricação de ferro no continente americano. 
Data dessa época também o início dos conflitos com os indígenas da região. Conta-se que os Tupiniquins enterravam seus mortos em urnas funerárias encontradas somente na vertente do morro que recebe a luz solar, na face leste. E que os bandeirantes jogavam os índios assassinados em valas na face oeste do morro, sem luz - onde foram encontradas várias ossadas desprovidas de urnas funerárias. 
Há quem diga que esse fato estava relacionado ao efeito simbólico de que as almas dos mortos permaneceriam nas sombras, vagando perdidas e sem conexão espiritual com seus descendentes. E que isso era parte das estratégias de colonização, que se apropria dos valores culturais dos povos dominados para descaracterizar seus vínculos sagrados e usar suas crenças contra eles.

A Fábrica de Ipanema

Em 1810, foi criada na área, por ordem de Dom João VI, a Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema – conhecida como Fundição Ipanema, o primeiro empreendimento siderúrgico de caráter industrial do país.
No início do empreendimento, vieram para trabalhar no local imigrantes europeus, principalmente suecos, alemães e ingleses. Para o trabalho nas fornalhas, entretanto, a mão de obra eram negros escravizados. 
A Fazenda Ipanema é registrada como um dos principais lugares de memória do tráfico negreiro do país. Ali existiram os chamados "Escravos da Nação", propriedade do próprio Império.
Afonso Sardinha, ufanado e lembrado na história pela instalação dos primeiros fornos para fundição de ferro no Brasil, também foi um dos maiores genocidas de Povos Indígenas e detentor de uma das maiores frotas de "navios negreiros" (sua vida enseja outras histórias...).

Livro sobre o Tráfico Atlântico de escravizados no Brasil.

Conta-se que as condições na Fábrica de Ferro em Ipanema eram muito árduas e insalubres. Trabalhando próximo de fornos aquecidos a altas temperaturas e dormindo em senzalas úmidas e frias, a estimativa de vida dos escravos não ultrapassava 25 a 30 anos. Eram comuns também os suicídios e tentativas de fuga, sendo essas últimas castigadas com torturas e espancamentos.

O Monge João Maria

Nos idos de 1844, quando a fábrica de ferro estava no seu auge, apareceu por essa região, um monge italiano que ouvira falar das precárias condições em que os escravizados viviam. Ele se instalou em uma pequena cavidade de arenito existente na base do Morro Araçoiaba, para prestar assistência a eles. 
O tal monge é uma figura cercada por mistérios. Sua história apenas recentemente começou a ser decifrada, ligando-se os registros que deixou em várias regiões.
Pesquisas históricas contam que se tratava de Giovanni Maria D’Agostini, nascido em Novara, na Itália, por volta de 1800. Ele não teria sido ordenado monge oficialmente pela Igreja, pedido que, segundo algumas fontes, foi negado pelo fato dele ter uma deficiência em uma das mãos. 
Assumindo os votos franciscanos de obediência, castidade e pobreza, o Monge João Maria, como ficou conhecido no Brasil, seguiu uma trajetória religiosa própria e passou a vida pregando o evangelho. 
Devoto de Santo Antão Adade, místico egípcio, assumiu seu figurino, vestindo hábitos rústicos e mantendo as barbas longas.

Retrato do Monge João Maria feito em Cuba em 19861.

Carregava um cajado e vivia de forma solitária em abrigos improvisados na natureza, onde atendia a população local. 
Além de proferir sermões eloquentes, relata-se que ele tinha um vasto conhecimento sobre medicina, radiestesia e uso de ervas, sendo-lhe atribuídas diversas curas e milagres. 
Ele percorreu dezenas de países, incialmente na Europa e posteriormente nas Américas, onde aportou 1838. Conta-se que João Maria chegou no Brasil em Belém, em 1844. De lá foi para o Rio de Janeiro, então capital do Império, onde vivei alguns meses na área da Pedra da Gávea. 
Depois dos quatro anos que passou na região de Sorocaba, o incansável eremita migrou para o sul. Foi diversas vezes escorraçado pelas elites locais, por condenar a prática da escravidão e o aprisionamento e extermínio indígena. Chegou a ter sua prisão decretada em 1848, refugiando-se na Ilha do Arvoredo em Santa Catarina.
Respeitado em todas as regiões por onde passou, ele caiu nas graças populares e ganhou fama de santo, com uma história permeada por lendas, incluindo o seu assassinato e o desaparecimento do seu corpo, em 1869, no Novo México/EUA. Ficou conhecido como “o eremita do velho e do novo mundo”. 

A Gruta Santa

Na região de Sorocaba, João Maria recebeu a alcunha de “Monge de Ipanema” e seu abrigo no Morro Araçoiaba é chamado de Gruta do Monge ou Gruta Santa. Ela é visitada e venerada até os dias atuais por devotos do monge, conhecidos como joaninos, espalhados por diversas regiões do Brasil. 
Relata-se que na gruta havia uma fonte de água considerada benta que vertia pela encosta, que secou há alguns anos. E se fala sobre a ocorrência de diversos milagres no local, como o de um menino que caiu do alto da serra sobre a cama de pedra do monge sem se machucar. 
Estima-se que o Monge João Maria tenha permanecido na região por cerca de quatro anos, indo posteriormente para o Paraná, que estava sendo assolado por um surto de peste negra, salvando muitas pessoas e fazendo sua fama também por lá. 
Algumas fontes, no entanto, dizem que o monge foi expulso da Fazenda de Ipanema pelos protestantes que ali habitavam e que ele teria rogado uma praga à área.
Relato ou boato, o fato é que a produção de ferro em escala industrial na região nunca deslanchou e a Fábrica Ipanema foi desativada algum tempo depois. 
Segundo os registros históricos, o Monge João Maria permaneceu no Brasil até 1852. Por onde passou, atraiu e encantou multidões. 
Sua trajetória no país estabeleceu uma topografia religiosa no território, principalmente na região sul, com a sua associação a montes, grutas, nascentes e fontes, as quais são atribuídas características especiais e dons de curas milagrosas.
Sua história de vida caracteriza um personagem que não apenas se destacou à sua época, mas cujo legado se perpetua no tempo, persistindo até a atualidade.
No interior de São Paulo, dentro da FLONA Ipanema, a Gruta Santa ainda é visitada e eventualmente lá são deixadas velas, flores, objetos pessoais de pagamento de promessas ou oferendas. Moradores da região fazem procissões para homenagear a memória do monge e propagam a visão desse local como místico e cheio de lendas e mistérios. 

Gruta Santa na base do Morro Araçoiaba, local de morada do Monge João Maria da Floresta Nacional de Ipanema.

A história contada parcialmente

As estruturas que compunham a antiga fábrica de ferro foram tombadas pelo patrimônio histórico-cultural pelo IPHAN. 
Diversos materiais de divulgação ressaltam a importância desse acervo na história do Brasil Imperial e como o nascedouro da siderurgia nas Américas. 
No entanto, essa história é muito mais ligada a fracassos do que a sucessos. Na provocação de alguns pesquisadores, a Fazenda Ipanema foi o primeiro lugar onde se tentou fundir ferro no continente americano, mas o último que conseguiu...
Além disso, poucos textos (incluindo aqueles referentes ao patrimônio histórico-arqueológico) lembram dos grupos sociais que foram exterminados, maltratados e renegados à mera condição de mão de obra secundária. 
Os documentos oficiais, em geral, reforçam um imaginário colonialista, positivista e evolucionista que considera a história do Brasil somente a partir de 1500, negligenciando as historicidades dos povos nativos e daqueles forçados à diáspora.


O passado, no entanto, ainda assombra...

Lugares marcados por registros de violência, sofrimento, crueldades, genocídios e suicídios são considerados como impregnados de energias negativas. Muito comumente eles são também associados a relatos de aparições e barulhos noturnos como vozes, gritos e choros e considerados “mal assombrados“
Para algumas pessoas, são espíritos que ali permanecem presos, o que pode despertar nas mais sensíveis mal-estar físico ou psicológico. 
Para outras, entretanto, isso transforma o local em atrativo turístico da categoria Turismo de Terror, que tem adeptos no mundo todo. 
A dor dos que foram ali torturados, maltratados e sacrificados, no entanto, não pode ser negligenciada na transformação desses espaços em produto de uso público. Uma interpretação crítica e reflexiva desse patrimônio se faz mais do que necessária. 

Para mim, conhecer o Morro do Araçoiaba, visitar a Gruta Santa e pesquisar as histórias por trás da história da FLONA Ipanema foi uma experiência um tanto dolorosa. De me dar conta das injustiças e violência do passado mas, principalmente, de entender como elas se perpetuam no presente pela invisibilidade dessas memórias e na parcialidade dos registros. 
Daí a necessidade premente de promover a descolonização dos pensamentos e das práticas na gestão das unidades de conservação, abrindo espaço para a voz dos grupos sociais historicamente marginalizados.
Mesmo quando isso não é mais possível - por eles terem sido exterminados do território - , o registro dessas memórias e a reparação na forma como contamos e recontamos a história dos lugares é fundamental.

Há muitas outras histórias mal contadas sobre a  FLONA Ipanema e também sobre as outras unidade de conservação no país. 
Que registros como o da Gruta Santa possam nos nutrir de compaixão para acolher esse lado trágico da história da nossa nação, que faz parte da história de todos nós. 
E nos munir de inspiração, instigando a traduzir esses sentimentos em ações concretas de reconciliação dessa memória para ajudar na construção de uma nação verdadeiramente pluriétnica, multicultural e solidária.

Obrigada Monge João Maria, indígenas, negros, caboclos, erês e orixás que permeiam essa floresta nacional encantada.

Érika Fernandes Pinto, 13/09/2019

Um agradecimento especial à Maria Helena, colega de aventuras e dessa pesquisa para contar as histórias mal contadas das unidades de conservação e dos lugares sagrados do Brasil.

O monge João Maria faz parte da história de várias Unidades de Conservação. Desde o Parque Nacional da Tijuca e sua primeira morada na Pedra da Gávea/RJ, à FLONA Ipanema/SP, passando pela Reserva Biológica do Arvoredo/SC e duas áreas protegidas estaduais criadas em sua homenagem, o parques do Monge na Lapa/PR e em Lages/SC.
Para saber mais sobre sua história, recomendo a obra KARSBURG, Alexandre (2014). O Eremita das Américas: a odisseia de um peregrino italiano no século XIX (LINK). E o documentário A Maravilha do Século, de 2019, que retrata os caminhos percorridos pelo religioso (LINK)
Para saber mais sobre os Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil acesse AQUI

A Floresta Nacional de Ipanema é uma unidade de conservação administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio. Está localizada no interior do estado de São Paulo e abrange parte dos municípios de Araçoiaba da Serra, Iperó e Capela do Alto. Está aberta para visitação de terça feira a domingo. Para saber mais acesse AQUI.




Comentários

  1. Maravilhoso. Já Conhecia um pouco da história do Monge, por relatos dos meus parentes mais antigos . Mas a historia deste monte realmente impressiona e como é doloroso saber, que tantas vidas foram escravisadas em nome do proguresso.

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