A PRINCESA ENCANTADA DE JERICOACOARA E OS OUTROS LADOS DO PARAÍSO
Mundialmente famosas, as praias de Jericoacoara, no litoral do Ceará, atraem milhares de visitantes em função de suas belezas naturais, passeios de jangada, esportes náuticos, culinária elaborada e artesanato.
“Jeri, o paraíso é aqui!” virou um tipo de slogan da região. Que é vendida nas mídias e pelas agências de turismo como um dos melhores destinos de natureza do Brasil.
Entre os atrativos famosos do local como a Pedra Furada, a Duna do Por do Sol, a Lagoa Azul e a Árvore da Preguiça, surgem também outros lugares menos conhecidos, mas cercados por mistérios.
Como a gruta que daria acesso a um universo paralelo encantado, uma lenda contada pelos antigos moradores da região. Cuja entrada fica embaixo do Morro do Farol – uma pequena elevação rochosa com vegetação rasteira, de cerca de 100 metros de altura.
A protagonista dessa narrativa, é uma linda princesa que foi transformada, por magia, em uma serpente de escamas de ouro, tendo apenas a cabeça e os braços femininos.
E que guarda os portões de uma cidade mágica com castelos de torres douradas e tesouros inimagináveis.
Reza a lenda que, para se ver livre dessa condição, a princesa precisa encontrar alguém corajoso o suficiente para se aproximar dela e desencantá-la com o sangue de um sacrifício humano voluntário.
Quando isso acontecer, se abrirá então a entrada para esse reino maravilhoso e a princesa poderá ser vista novamente com toda a sua beleza, sem igual nesse mundo.
E o responsável pelo desencantamento poderá com ela se casar.
Até hoje, no entanto, parece que não apareceu ninguém disposto a quebrar esse encanto.
E a princesa, metade mulher, metade serpente, seus tesouros e sua cidade encantada continuam guardados no Morro do Farol, à espera de um herói destemido.
A lenda da Cidade Encantada de Jericoacoara e sua princesa é reproduzida em diversos materiais publicitários e em livros escolares.
Virou enredo de animações e de livros infantis, como o do poeta cearense Klévisson Viana (na foto ao lado).
Não faltam depoimentos nas redes sociais afirmando que o local da lenda realmente existe e vídeos que mostram a entrada da gruta.
Segundo Câmara Cascudo, na obra Geografia dos Mitos do Brasil (2000), lendas sobre princesas–serpentinas são comuns no imaginário popular da região norte e nordeste do país.
Representam vestígios de tradições mouras que têm origem na península ibérica e chegaram na terra brasilis trazidos pelos colonizadores. Conformam um imaginário de magia e encantamento que perpassa diversas regiões litorâneas.
Jericoacoara, que pertence ao Município de Jijoca, já foi uma pacata vila de pescadores.
Nos idos das décadas de 70 e 80 começaram a aparecer os primeiros visitantes, atraídos pela beleza de suas praias. Chamados então de “mochileiros”, acampavam nos quintais dos moradores.
Nas décadas seguintes foi a vez dos praticantes de esportes aquáticos - principalmente wind e kitesurf - descobrirem o potencial do seu mar tranquilo com ventos fortes. E com eles veio a instalação das primeiras pousadas de “pessoas de fora”.
Na última década o fluxo de visitantes aumentou muito - beirando a marca de um milhão de pessoas/ano -, com a facilidade de acesso proporcionada pelo asfaltamento da estrada e a inauguração de um aeroporto, que recebe inclusive voos internacionais.
O turismo de luxo se tornou a nova tendência, com a construção de hotéis de alto padrão, bangalôs vips e a promoção de festas glamourosas, como acontece no Ano Novo, além de grandes eventos esportivos internacionais.
Dos moradores tradicionais, poucos permaneceram em Jericoacoara.
Com os altos preços impostos pela especulação imobiliária, a maioria migrou para vilas próximas, que utilizam apenas como dormitório, mantendo vínculos de trabalho com Jeri, onde passam o dia.
Diz-se que a simplicidade e a tranquilidade características do local para quem o conheceu, como eu, há 15 anos, praticamente desapareceu.
Na alta temporada, é preciso enfrentar fila para chegar perto dos principais atrativos, como a Pedra Furada e a Árvore da Preguiça, onde só se pode permanecer o tempo necessário para tirar uma foto.
O crescimento da estrutura urbana foi rápido e desordenado. E com isso, veio também o aumento da produção de resíduos, a escassez de água, a contaminação do solo e do lençol freático.
A duna de onde tradicionalmente se observa o por do sol está cada vez mais compactada, devido a circulação de veículos, as construções que se aproximam cada vez mais da área e o pisoteio causado pelas milhares de pessoas que passam por lá.
Registrada em milhares de selfies postadas nas redes sociais, são poucos os que ainda se permitem parar para admirar a paisagem. E menos ainda os que conseguem vivenciar o seu encantamento peculiar.
Andar calmamente na praia à luz do luar, observando tartarugas que costumavam reproduzir no local já não é mais possível. Nem para as pessoas, nem para as tartarugas, tantos são os hotéis que avançam pela areia.
O Morro do Farol, morada da princesa encantada, já foi ameaçado pela proposta de construção de um restaurante e de um teleférico.
O lugar continua sendo lindo. Mas há quem diga que lhe roubaram a alma!
Eu não estive lá recentemente, e espero que isso não tenha acontecido. E que ainda seja possível conciliar o desenvolvimento do turismo com o respeito aos moradores tradicionais, a valorização dos seus saberes e fazeres e a conservação da natureza.
Enquanto isso, torço para que a alma de Jeri continue bem guardada pela princesa-serpente no coração da sua cidade mágica, nos lembrando de que os lugares encantados não devem ser ocupados e nem possuídos!
Érika Fernandes Pinto
São Luis do Maranhão, 15/09/2019
Fontes:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/02/turismo-de-luxo-muda-jericoacoara-encarece-a-vila-e-expulsa-moradores.shtml
Além de desvendar as histórias e lendas se cada lugar . Seu rexto é uma lição de ecologia.
ResponderExcluirEssa é a ideia, mostrar como tudo está conectado nessa relação sociedade e natureza. Obrigada!
ExcluirTexto maravilhoso, quanta coisa interessante! E também um belo exercício de espírito crítico pela devastação de tantos locais singulares e, mais do que tudo, de suas características mais peculiares do ponto de vista "mágico" mesmo, meus parabéns!
ResponderExcluirObrigada querida. Tive boas professoras!!! Principalmente uma tal jornalista Monica Pinto, cuja escrita afiada e ousada são uma fonte de inspiração constante. Grata pelo exemplo, amizade e apoio de todas as horas. Você mora no meu coração!
ExcluirAgradeço sua generosidade, mas igualmente aprendi e aprendo com você, pesquisadora acadêmica e buscadora existencial de primeira linha =)
ExcluirPrincesa, serpente, magia, mar e cultura popular
ResponderExcluirViva o Sagrado
Do Ceará !
Parabéns, Erika!
Viva!
ExcluirMuito triste esse turismo predatório nos lugares lindos e encantados como Jericoacoara. Estive lá qdo ainda eram poucas pousadas que abrigavam os visitantes.
ResponderExcluirLegal, Érica, seu trabalho
Importante registro sobre lugares a que éramos levados a pensá_los apenas como fragmentos da natureza inumana. O Blog derperta-nos para outros olhares, revelando conexões entre o sagrado e o natural, entre o outrora visto visto como intocável e encantado e a atual expansão da rede hoteleira destinada a abastados ou àqueles submetidos ao turismo de massa; em ambos os casos, natureza e cultura tornam-se objetos do mercantilismo que não se importa com a conservação ambiental e valorização do patrimônio cultural, juntas e indissociáveis.
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