UMA TRILHA ENCANTADA PELA RESERVA EXTRATIVISTA CHICO MENDES

Érika Fernandes Pinto na base de uma samaúma na Reserva Extrativista Chico Mendes,
uma das árvores gigantes da Amazônia (Foto Acervo SNSBrasil). 


Era uma vez na Amazônia a mais bonita floresta
Mata verde, céu azul, a mais imensa floresta…
No fundo d’água as iaras, caboclos, lendas e mágoas
E os rios puxando as águas…
 
(Vital Farias em A Saga da Amazônia)

Um breve relato da minha história pessoal com a RESEX Chico Mendes


Na minha trajetória como servidora pública federal na área ambiental, depois de trabalhar por 5 anos no Maranhão, fui parar em Brasília, em 2006, quando assumi um cargo junto à Coordenação Geral de Reservas Extrativistas, no IBAMA sede. 

Minha primeira viagem de campo nessa nova função foi para a icônica Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre.

Uma área de quase um milhão de hectares. Que foi o lócus central da luta do movimento seringueiro, da Aliança dos Povos da Floresta, da vida e da morte de lideranças que mudaram os rumos da proteção da natureza no Brasil e propagaram a importância da Amazônia para o planeta. 

E lócus também da origem da proposta dessa categoria de unidades de conservação (UC) de uso sustentável, voltada para a manutenção de modos de vida de populações tradicionais. Um diferencial brasileiro que virou exemplo para o mundo das áreas protegidas.

Nessa primeira viagem, em 2006, não tive oportunidade de conhecer muito da área da reserva em si, porque fomos para participar de uma reunião com lideranças comunitárias para revisão do plano de utilização da reserva, na pequena e já famosa cidade de Xapuri.

Ainda assim, um mundo novo se descortinou para mim em meio às falas dos moradores locais. 
Um universo peculiar formado por seringais, varadouros, ramais e colocações, histórias de caça, pesca, de coleta de castanha e de extração do leite de seringueira para a  produção de borracha. 

Pessoas em grande parte já mais idosas vindos de várias partes da RESEX estavam reunidas naquele evento. Muitas traziam consigo debaixo do braço surrados caderninhos impressos contendo o primeiro acordo de uso da RESEX, elaborado logo após a sua criação, em 1992. 

Me surpreendi ao perceber que alguns moradores, apesar de poderem ser considerados semianalfabetos, sabiam de cor cada uma das regras ali escritas, daquela que era considerada “a lei da reserva”. 

Naquele tempo a RESEX Chico Mendes estava sendo bastante falada – e difamada, diga-se de passagem  devido ao crescimento dos focos de desmatamento nas colocações para introdução de pasto e gado. 

Uma atividade produtiva que em certa medida contraria os objetivos de criação da unidade de conservação, que é manter a floresta em pé e o modo de vida extrativista.
 
Surpreendentemente, para mim e outros colegas de Brasília, a grande demanda defendida pelos participantes da reunião não era pela possibilidade de ampliação das áreas desmatadas. E sim por um maior controle do governo dessa expansão de pastos e gado

As lideranças advertiam que a coisa estava saindo do controle. E que era preciso uma ação urgente para barrar o que poderia ser a maior ameaça à reserva desde o fim do tempo dos patrões seringalistas, época em que os moradores viviam em regime de opressão.
 
Foi imersa nessa problemática da introdução e do crescimento da produção de gado na reserva que, após a reunião, embarquei em um pequeno avião bimotor para fazer um sobrevoo na área. 

A visão que tive do alto, no entanto, me surpreendeu.
 
Ainda que focos de desmatamento fossem visíveis aqui e acolá, eles estavam restritos a pequenos pedaços de terra em meio a uma imensidão verde de floresta preservada como eu nunca tinha visto igual. 

Vista aérea da Reserva Extrativista Chico Mendes/Acre
(Foto: Rede Mundial de Computadores).

Com quase um milhão de hectares, o bom estado de conservação da RESEX me impressionou ainda mais quando pude observar o que aconteceu com o restante do território acreano ao redor da área protegida. 

Tudo o que até poucas décadas atrás era um contínuo de exuberante floresta tropical cheia de biodiversidade foi quase totalmente transformado em pasto, sobrando algumas poucas árvores dispersas pelos imensos campos de capim exótico. 

A única área florestada restante na região era a RESEX Chico Mendes! 

Um cenário desolador...

Assim, ainda que a RESEX estivesse enfrentando uma série de desafios, saí de lá me perguntando como ela tinha resistido diante de um processo tão intenso e devastador de substituição das florestas por pasto, que assolou este estado com uma velocidade voraz. 

E me peguei pensando que a RESEX Chico Mendes não era um problema, como circulava nos corredores de Brasília, e sim um verdadeiro milagre! 
E que deveríamos estudar melhor quais os mecanismos internos operavam para que suas matas continuassem preservadas, mesmo sem incentivos financeiros e ações governamentais, quando nada mais à sua volta havia sobrado. 
 

De volta à RESEX 17 anos depois 

Eis que (inacreditáveis) 17 anos depois dessa primeira visita, em março de 2023 tive a oportunidade de voltar ao Acre e à RESEX Chico Mendes. 

O objetivo da viagem foi conhecer um trecho da Trilha Chico Mendes, uma proposta pioneira de ecoturismo na região, um trajeto de longo curso conectando paisagens e algumas colocações de seringueiros. 

E dialogar com representantes de alguns órgãos locais e lideranças comunitárias sobre a proposta da RESEX ser uma área prioritária de um programa que eu coordeno no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), voltado à integração de valores culturais na gestão das UC.

Fui recebida pela Cibele Correia, uma servidora da leva mais recém-chegada na instituição, já apaixonada pela RESEX e totalmente envolvida com a sua gestão. E pelo Fernando Maia, um servidor mais antigo e que participou diretamente de muitos processos que ocorreram na área, como a própria implementação da trilha Chico Mendes.
 
Viajando e conversando com eles pude ter um pouco de noção do quanto os problemas que vislumbrávamos há mais de uma década se agravaram. 
E muito! 

O desmatamento para introdução de pasto, até então feito para atender demandas dos próprios comunitários, se tornaram uma pressão gigantesca 
do agronegócio para expansão por novas áreas. 

A venda de colocações para pessoas de fora da RESEX, que não é permitida pelo plano de utilização, vem ocorrendo à torto e direito. Acobertada - e viabilizada muitas vezes - pelos próprios órgãos públicos que deveriam impedir o processo, coaptados politicamente por grandes interesses econômicos. 

Corrupção, roubos e desfalques financeiros são temas que hoje assolam as associações de moradores da RESEX, algumas delas criadas em épocas recentes apenas para agir em favor desses interesses.
 
Também mentiras, difamação e ameaças contra pessoas que se posicionam contra esses eventos passaram a fazer parte do jogo, intimidando aqueles que tentam agir para impedir o extermínio da floresta e do modo de vida dos povos da floresta.

Em meio a todo esse contexto, a pergunta que não quer calar é “Será que a RESEX tem solução?".

Eu estou apenas no início desse novo trabalho na região e não tenho resposta para essa questão. 

Mas o que vivi nesses poucos dias que passei por lá, me deixaram ao menos com esperança de que sim, não só a RESEX tem solução, como ela pode ser emblemática da construção de um lindo caminho em prol do bem viver da floresta e das gentes da floresta

Muitos pesquisadores vêm estudando essa região há anos e muitos projetos foram ali realizados, diversas estratégias já foram tentadas. Muitos ficam desesperançosos de qualquer possibilidade de mudança por conta disso. 

É importante avaliar com os erros e acertos do passado para compreender o presente e poder vislumbrar um novo futuro. 
A meu ver, outras possibilidades existem, mas demandam escolhas políticas, econômicas e sociais e a ressignificação de alguns valores que levaram vários projetos a focar somente em aspectos utilitários e econômicos, negligenciando o essencial. 

Não posso dizer por qual trilha a RESEX seguirá. Mas deixo aqui uma primeira contribuição do meu olhar sobre a problemática, à luz de uma visão que propõem integrar cultura, natureza e espiritualidade. 

Essa série de textos engloba informações das minhas pesquisas e relatos minhas experiências e aprendizados nas visitas à RESEX Chico Mendes e suas colocações. 

Do contato com seus moradores, da estada em suas casas e do caminhar com eles por suas trilhas na floresta e na memória. 

Do diálogo com colegas servidores do ICMBio e de outros órgãos (como o MMA e o IPHAN), pesquisadores, representantes de movimentos sociais, ONGs e associações extrativistas, entre outras pessoas empenhadas em criar estratégias para aliar a conservação a natureza à manutenção do modo de ser e de viver extrativista. 

Há tanto para mostrar...

Na primeira parte vou tentar, com as minhas palavras, fazer uma síntese de uma história complexa e rica em detalhes, que vai da descoberta da borracha nos rincões da floresta sul-americana ao apogeu da sua importância em todo o mundo, tornando-se o chamado "ouro branco".  

Da saga que levou à ocupação seringueira do território do Acre,
 disputado entre Bra
sil e Bolívia e até então exclusivamente indígena, com a “importação” de nortistas para trabalhar nos seringais. 

Pessoas que, fugindo das secas que assolavam suas regiões, lá chegaram cheios de esperanças na possibilidade de uma vida melhor. Para logo verem ela ruir frente ao duro sistema de semiescravidão mantido pelos patrões e seus barracões. 

De como esses imigrantes que sonhavam em retornar para suas áreas de origem, 
com o declínio econômico da borracha amazônica, foram abandonados “ao Deus dará”, largados nos seringais e esquecidos nos confins da floresta.

Até começarem a "empatar" com seus próprios corpos a nova frente de pressão e destruição da floresta que tentava implantar "fazendas produtivas" em uma região tida então como "desabitada".
 
De como essas pessoas até então desconhecidas da sociedade nacional empreenderam uma luta local que mudou os rumos da história da humanidade. 
Que levou a mudanças nas regras dos financiamentos internacionais para empreendimentos na Amazônia e à criação das primeiras reservas extrativistas, inspiradas no modelo de terras indígenas. 

Uma luta que deixou políticos e fazendeiros furiosos. Onde muitos tombaram, assassinados covardemente, como o líder sindicalista que dá nome à reserva e ao órgão federal responsável pela execução das políticas de conservação da natureza (o ICMBio), onde nem todos seus servidores conhecem de fato essa história. 

Imagem estilizada de Chico Mendes
(Fonte: Rede Mundial de Computadores)

Vidas que se foram, mas cujas ideias e espírito permaneceram vivos no legado perpetuado pelos companheiros. 

E de como essa história chega ao contexto atual, 
cheio de desafios, com novas frentes de pressão e opressão, mais elaboradas, tecnológicas e mancomunadas com grandes poderes políticos e econômicos.

Na segunda parte da série, vou compartilhar um pouco do que eu e Cibele estamos descobrindo no levantamento de valores culturais da natureza da RESEX Chico Mendes, esforço que começamos em março a empreender.

Nessa trajetória, vamos ver como cultura e natureza estão intimamente relacionados, e porque não se pode pensar na floresta sem os saberes dos povos que vivem na e com a floresta. 

Vamos conhecer a Santa dos seringueiros e os seringueiros que viraram santos, suas romarias e lugares sagrados. 
Os encantados da floresta que cuidavam das matas e dos animais para garantir que o uso dos recursos fosse feito somente "na medida da precisão".

E compreender como a religiosidade foi e ainda é um componente essencial do modo de vida e da identidade dessas pessoas. 

Pois é, a RESEX Chico Mendes tem tudo isso e muito mais...

Fica então o convite para embarcar nessa série de postagens que vai percorrer varadouros e ramais, trilhas de castanha e estradas de seringa na Amazônia, em meio a essa emblemática e pioneira unidade de conservação. 

Uma trilha encantada pelos segredos de uma imensa floresta que, como canta Vital Farias em Saga da Amazônia, "tem mata verde, céu azul, iaras, caboclos, lendas e mágoas, os rios puxando as águas e uma gente valorosa que guarda e sustenta o seu coração

 
Seja bem vindo, seja bem vinda

Érika Fernandes Pinto
27/04/2023


Comentários

  1. Parabéns pelo trabalho fantástico na luta pela preservação e manutenção da natureza, nessa região tão importante para a biodiversidade do planeta. Desejo sucesso nessa sua jornada Etika!
    Marcos Peçanha

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