SOLDADOS DE SEBOLD: OS SENTINELAS DO SAGRADO EM ALFREDO WAGNER/SC (Parte 1)

Formação denominada Soldados de Sebold em Alfredo Wagner/SC

(Foto de Érika Fernandes Pinto – Acervo SNSBrasil)


Santa Catarina, estado onde estou residindo no momento, tem regiões fantásticas. Muitas histórias, culturas e belezas naturais que eu apenas comecei a conhecer.

De um lado tem a costa oceânica, com suas famosas praias e ilhas, que concentram a maior parte da população que reside no estado. 

E do outro tem as serras, com suas montanhas e vales profundos, matas, campos e rios, algumas áreas surpreendentemente ainda bastante remotas e preservadas. 

Em meio a essas paisagens deslumbrantes, há diversos sítios naturais sagrados...

Como os Campos do Quiriri, região que conheci em 2021 fazendo a travessia do Morro do Araçatuba em Tijucas do Sul/PR ao Monte Crista, em Garuva/SC, uma outra história para contar. 


Esse final de semana fui conhecer outro desses lugares misteriosos e encantados que abundam nesse estado, chamado Soldados de Sebold, no município de Alfredo Wagner, que compõem a região do Alto Vale do Rio Itajaí Açu. 

Um lugar maravilhoso, com montanhas de formas piramidais, escarpas horizontais, formações rochosas curiosas, vales verdejantes, cânions e cachoeiras de águas cristalinas, além de muitos mistérios.


A ida por uma estradinha de terra acidentada e cheia de aclives, foi razoavelmente tranquila. 

Aventura mesmo foi a volta, quando uma chuva fina deixou a estrada enlameada e escorregadia, em meio a curvas sinuosas ladeadas de pirambeiras. 

Um trajeto totalmente desaconselhável para um carro como o meu - um Fiat Idea Adventure que de "adventure" só tem o nome, diga-se de passagem. 

Mas, de fato, a viagem acabou por se tornar uma grande aventura... 

E essa é a história que eu hoje vou contar.


O chamado das montanhas

Já fazia um tempo que o Soldados de Sebold estava na minha lista de “lugares incríveis para conhecer em Santa Catarina”. Desde que o meu filho esteve lá e me contou um pouco sobre a beleza e magia do local. 

Mas foi o convite do André Rockenbach e da Ana Rocha, da Brasil Primitivo, que me motivou a ir nessa data para lá, compartilhar de um momento especial que eles promoveriam no domingo pela manhã, de meditação e conexão com a natureza.

No Dia da Terra (22/04) e época que marca a abertura da temporada de montanha no ano, imediatamente senti o chamado. 

E mesmo sem tempo para me preparar para a viagem, resolvi ir. 

Saí de casa, em Itajaí, no sábado cedinho pela manhã, passando por Floripa para pegar o Philipp, um alemão que está desbravando a América do Sul e que me acompanharia na viagem. 


Eu normalmente gosto de pesquisar um pouco sobre os lugares que vou conhecer, especialmente os sítios sagrados que fazem parte do meu estudo, para minimamente me preparar para o encontro. 

Só que esse não foi o caso dessa vez...

A propriedade onde está o Soldados de Sebold tem um excelente website com todas as informações necessárias para a visita disponíveis. 

Mas confesso que não li nada antes da viagem, por falta de tempo mesmo. 

Apenas catei meus equipamentos de camping na correria, passei no mercado para pegar uns lanchinhos de trilha e parti em viagem. 

Só com “a cara e a coragem”, sem saber direito onde era o lugar ou como chegar lá, seguindo algumas informações de áudio do André e crente de que era só perguntar para as pessoas certas que chegaria ao local. 


Depois passar em Alfredo Wagner, a cidade mais próxima, o caminho segue por uma estrada de terra em direção à localidade de Caeté/Santo Anjo.

De lá, para chegar no Soldados há duas opções. 

Caminhando a partir de um local conhecido como “estacionamento”, onde são deixados os carros de passeio, continuando a pé a partir daí pela chamada trilha clássica

Ou seguindo com o veículo por uma estradinha de terra com subidas íngremes que leva diretamente até a área de camping, nas proximidades da montanha. 

Dizem que a trilha clássica, que não foi o trajeto que eu fiz, já é um belo atrativo por si só. Tem cerca de 6 km de extensão, com 460 metros de aclive. 

É considerada de nível moderado, mas exige um certo preparo físico (principalmente se a pessoa estiver carregando mochila cargueira), conhecimento de orientação por mapa e cuidados básicos de segurança em ambiente natural. 

A área do estacionamento, que fica a cerca de 17 km do centro de Alfredo Wagner, é propriedade da família do Seu Claudir, que também oferece serviço de transfer 4×4 para pessoas ou para as mochilas de grupos de trekking.


Se eu tivesse lido o site do Ecoparque ou alguma das placas do caminho, saberia das advertências com relação à estradinha dali para a frente, acidentada e desafiadora, não recomendada para veículos sem tração.

Mas, querendo chegar lá e aproveitar o período da tarde para caminhar nas montanhas, passei da entrada do estacionamento e resolvi experimentar a estrada, que alguns diziam que dependendo das condições do tempo dava para transitar com um carro simples. 

Em um ponto do trajeto cruzamos com outro carro sem tração que voltava do local. Entusiasmados, eles afirmaram exultantes que a estrada era ruim, mas que valia a pena porque a paisagem era incrível, estimulando-nos a seguir viagem. 

Com o sol brilhando e a estrada seca, meu carro até deu uma rateada aqui e acolá nas subidas mais íngremes. Mas nada que um empurrãozinho do copiloto não tenha conseguido resolver. 

Assim chegamos na entrada do Ecoparque Soldado Sebold sem grandes percalços. 

Mas se chegar foi relativamente fácil, voltar não seria tão simples... 

Mas vamos primeiro conhecer o local!


Entrada do Refúgio e Ecoparque Soldados de Sebold (Foto Acervo SNSBrasil)

O Soldados Sebold

A formação chamada Soldados de Sebold fica dentro de uma propriedade particular que recebe visitantes para day use e também oferece várias opções de pernoite - de camping com estrutura à camping selvagem, de refúgios rústicos de montanha e cabanas no estilo glamping, a chalés de alto padrão (A-frame). 

A estadia deve ser agendada previamente, pois apesar do local ser grande, a estrutura pode lotar, como aconteceu no final de semana que estive lá (para conhecer o local e reservar hospedagem clique AQUI).

As áreas de camping são divididas em baixa e alta.

Mais perto das estruturas de apoio, o camping baixo, ladeado por um riacho de águas cristalinas, tem banheiros ecológicos (com sistema de fossa biodigestora) e chuveiros quentes (nem sempre funcionando), uma cozinha compartilhada, mesas para piquenique, decks panorâmicos para barracas e áreas para fogueira.

Perto dali está o acesso para a Cascata das Andorinhas e o Cânion Lajeado.

A parte alta, emoldurada pelas belíssimas vistas das bordas da Serra Geral, é um espaço para acampamento selvagem. O local é mais exposto e sujeito a fortes ventos. 

Dali partem as trilhas para as montanhas. 

De um lado está o caminho até a chamada Pirâmide do Soldados, uma formação curiosa e majestosa. 

A trilha, bem marcada, pode ser feita sem grandes dificuldades (além de um bom fôlego e pernas preparadas para subida), em cerca de 45 minutos a uma hora. 

Do outro lado está a trilha do Mirante do Arranha-Céumais longa e pesada, com cerca de 17 km e 850 metros de aclive. Demanda maior experiência, condicionamento físico e acompanhamento de guia, com opção de fazer um bate volta de um dia ou acampar no mirante.

O proprietário do Ecoparque, Renan Schuller, conta que conheceu o local fazendo trilhas de Mountain Bike na região. 

Apaixonado pela serra e pela natureza, há seis anos abriu o local para montanhistas e campistas que querem se aventurar pela região e experenciar a magia do lugar.


A Morada do Guardião

Vista do Cânion Lajeado a partir da propriedade Moradas do Guardião (Foto: web página do Moradas do Guardião)

Há outras propriedades nos arredores que também oferecem hospedagem e acesso a trilhas e passeios diferenciados. 

Como a Morada do Guardião, que também tem área para camping, a Cabana do Guardião (com uma belíssima vista do Soldados) e a fascinante Cabana Via Láctea, com estrutura de vidro. 


Cabana Via Láctea com estrutura de vidro na Moradas do Guardião,
Alfredo Wagner/SC (Foto: web página do Moradas do Guardião) 

Além dos passeios já mencionados, nessa propriedade, administrada pelo casal Luan e Greice, se pode visitar a Cachoeira do Guardião e fazer uma trilha de Aquatrekking pelas profundezas do Cânion Lajeado, com ofurôs naturais beeeem gelados (conheça um pouco do local em vídeo clicando AQUI).


Pelas trilhas do Soldados

Voltando à minha visita ao local, nossa recepção começou com um banho na cascata perto do camping baixo do Ecoparque. 

O poço de águas cristalinas e gélidas que descem das montanhas é excelente para tirar a poeira da estrada e se conectar com a energia do lugar. 

Depois de armar acampamento no camping alto, fomos para a trilha do Soldados. 

Nos disseram que a pirâmide tem dois acessos, um pela esquerda e outro pela direita. 

Tentamos pela esquerda primeiro, mas não achamos a bifurcação que deveria derivar do trajeto para o Arranha Céu e voltamos para pegar o caminho mais convencional, a trilha da direita.

Caminhamos rápido para chegar ao topo da pirâmide a tempo de contemplar o por do sol no belíssimo vale. 

A trilha principal vai até topo da pirâmide e a base do Soldados é uma travessia íngreme em zig-zag, de cerca de 3 km, com 300 metros de aclive. 

Alguns trechos mais expostos exigem uma “escalaminhada”, auxiliada por cordas estrategicamente amarradas nos locais de passagem mais difícil. 


Vista do alto da Pirâmide do Soldados de Sebold (Foto de Philipp - Acervo SNSBrasil)


Além da vista espetacular dos vales profundos e extensos, se pode tocar na rocha das formações que dão nome ao local.


Na base da formação do Soldados de Sebold (Foto de Philipp - Acervo SNSBrasil)

Conhecendo um pouco mais sobre as formações da região

O tal Soldados de Sebold é um conjunto espetacular de formações rochosas de arenito Botucatu encravadas na encosta da Serra Geral. 

São quatro pináculos de pedra, protuberâncias de cerca de 90 metros cada, que se erguem no alto de uma base piramidal, posicionados lado a lado.

Há quem considere que eles lembram soldados enfileirados, como sentinelas que se destacam acima do vale. E que protegem a entrada da mítica região do Campo dos Padres, que se inicia a partir dali



Conta-se que o nome da formação foi dado pelo professor Juliano Wagner, descendente do primeiro proprietário e grande conhecedor dessas serras. Ele visitou o local pela primeira vez na década de 1990, com quinze anos de idade e, de lá pra cá, não parou mais de explorar a região.

A serra é um paraíso para hiking (caminhadas de um dia), trekking (caminhadas com pernoite), trilhas de Mountain Bike e veículos off road como jipes, caminhonetes, quadriciclos e motos, com trajetos com variados graus de dificuldade. 

Mas a simples contemplação da paisagem já vale uma visita ao local. 


Ao redor da formação do Soldados se avista a cordilheira norte do Campo dos Padres com formações chamadas Facão da Pedra BrancaEscarpa das BonecasMonte LageadoMonte KuhlCume da Chaminé e Arranha Céu.


Panorâmica da Cordilheira do Soldados de Sebold 
(Fonte: Rede Mundial de Computadores)


O pico mais alto avistado do local é o Monte Lajeado, que tem 1.791m e guarda as nascentes do Rio Itajaí do Sul, que vai desembocar no mar lá pertinho da minha casa.

No lendário Campo dos Padres, no alto da Serra Geral catarinense, estão os campos de altitude mais preservados do sul do Brasil. 

Eles estendem-se do Espraiado em Urubici até a Pedra Branca em Alfredo Wagner, com uma altitude média de 1.700 m acima do nível do mar. 

Essa é considerada a região mais selvagem do estado, sua última fronteira intocada, onde estão os seus pontos culminantes e a nascente de importantes rios

Minha próxima aventura de montanha vai ser por lá, então aguardem novas histórias...

Mas a região do Soldados de Sebold por si só já tem várias maravilhas para explorar e histórias pra contar... 


Ficamos por lá curtindo o visual até o anoitecer, descendo parte da trilha de volta no escuro. 

O friozinho noturno no acampamento foi agradável. A noite estava encoberta, sem estrelas, mas com o fiozinho da lua nova aparecendo no céu. 

A data era festiva - abertura da temporada de montanha 2023 - e no camping baixo tinha música ao vivo e uma lanchonete simples servindo hamburguês (com opção vegetariana!) e pinhão cozido no fogão à lenha. 

Além daquele clima gostoso de bate papo e interação com outros campistas e montanhistas. 


Meditando e aprendendo sobre o local

No dia seguinte, a manhã despertou nublada. Uma vivência super especial em volta da fogueira ajudou a acalmar a mente e aquecer o coração. 


André Rockenbach e Ana Rocha conduzindo uma vivência no Ecoparque Soldados Sebold (Foto: Érika Fernandes Pinto)

Ana Rocha, que coordena o espaço Qi Hai em Floripa, voltado para terapias e vivências de autoconhecimento nos guiou em uma meditação de integração com o todo. Conectando corpo, mente e espírito para captar a força dos elementos da natureza. 

Ao som da tigela tibetana, esse foi um lindo momento de cultivar a presença, o relaxamento e a paz interior.


André Rockenbach, da Brasil Primitivo contou sobre as energias do lugar e sua relação com os povos ancestrais. 

Ele explica que os paredões de pedra que vemos ao redor do Soldados são como cicatrizes do tempo em que o continente sul americano se separou do africano, até então unidos na grande Pangea

As pedras e seus mineiras guardam as memórias mais antigas da terra. 

Também as grandes araucárias que ali existem são árvores milenares e espécies vegetais de origem muito antiga, relictos do tempo dos dinossauros. 

Ele conta que as formas piramidais das montanhas existentes na região, além da beleza cênica, também funcionam como centros de captação e concentração de ondas magnéticas que chegam à Terra do cosmos. 

Por isso lugares assim tem uma energia especial, podendo ser considerados sagrados!



Além das incríveis formações geológicas, cânions secretos e belas cachoeiras, as escarpas da Serra Geral também guardam formas curiosas de gorilas, mamutes e rostos humanoides gigantes.

Para alguns, essas formações são meras casualidades da ação das forças climáticas ao longo das Eras. 

Para outros, no entanto, são esculturas esculpidas na rocha por povos ancestrais ligados aos continentes de Atlântida e Lemúria. 

Independentemente da explicação para o fenômeno, quando os olhos são treinados para os identificar, novas formas vão se revelando em diversos lugares. 

Muitas delas estão alinhadas com os astros e estrategicamente situadas em lugares emblemáticos. São, por isso, consideradas guardiãs de locais impressionantes e especiais no planeta. 

Registrar essas formações é parte da proposta da Brasil Primitivo, que busca trazer essa consciência da conexão ancestral com a terra para o presente e fazer novas descobertas sobre as antigas civilizações. 

(você pode conhecer mais sobre esse projeto acessando seu canal do Youtube).


Um banho com andorinhas

Depois da vivência, preparei um cacau bem quentinho, especialmente apropriado para o clima frio e meio chuvoso do momento. 

Enquanto nos deliciávamos tranquilamente com a bebida, apreciando a visão das montanhas e vales, mal reparei que quase todos os veículos iam embora. 

Sem razão aparente para ter pressa, inocentemente fomos conhecer ainda a Cascada das Andorinhas e cantar para suas águas antes de partir. 

A trilha para chegar até lá é curta, leva em torno de 30 minutos ida e volta, saindo da portaria do refúgio. 

O local tem uma belíssima vista para o Soldados de Sebold, emoldurada por araucárias centenárias.


Araucárias nas proximidades da Cascata das Andorinhas 
(Foto: Érika Fernandes Pinto – Acervo SNSBrasil)

A cachoeira, uma queda d’água de cerca de 12 metros de altura em um recorte do cânion, tem esse nome por saírem de uma caverna escondida atrás da cascata bandos de andorinhas toda manhã, que retornam ao final da tarde. 


Cachoeira das Andorinhas em Alfredo Wagner/SC, nas proximidades do Soldados de Sebold (Foto: Érika Fernandes Pinto – Acervo SNSBrasil)


Como voltar pra casa?

Com a tarde veio a chuva, que chegou de mansinho...

Mas foi o suficiente para tornar a estradinha de acesso ao Soldados, já não recomendada para veículos sem tração, uma lamaceira escorregadia difícil até de nos manter em pé no plano, o que dirá seguir com o carro sem tração morro acima. 

Na primeira subida mais íngreme eu finalmente entendi porque todo mundo tinha ido embora cedo! 

Empacamos em um ponto da estrada, no meio de uma lomba, sem conseguir subir para chegar no platô nem descer de ré para retornar ao camping. 

O que fazer nessas condições? 

Empurra daqui, escorrega de lá, fui me enlameando dos pés a cabeça, sem conseguir fazer o carro sair do lugar.

Mal sabia que a aventura estava apenas começando...


Guardiões pelo caminho

Lamentando pela imprudência e sem saber mais o que fazer, eis que surge das brumas o Seu Osni, montado em uma motocicleta off road, calçando botas de borracha e coberto com uma capa feita de sacos de lixo pretos, no melhor estilo “Batman da Serra Geral”.

Ele estava retornando para casa depois de passar o dia cuidando da sua criação de gado, em um sítio próximo.

Apesar de já idoso, ele gentilmente nos ajudou a novamente tentar empurrar o carro, sem sucesso. 

A única coisa que mudou foi que as rodas do lado direito do carro caíram dentro da valeta do canto da estrada, impossibilitando qualquer outra tentativa de movimento. 

Mas pelo menos a gente tinha saído do meio da estrada e dava pra "abandonar" o carro lá!


Eu já estava considerando voltar caminhando para o camping do Soldados quando o Seu Osni, super prestativo, ofereceu para pedir auxílio em uma propriedade ali perto, onde os donos tinham uma caminhonete traçada. 

Um tempo depois chegaram o Luan e a Greice, casal que cuida da Moradas do Guardião, em uma Toyota com guincho. 

Mas cadê que o meu carro tem um lugar para prender guincho? 

Tenta daqui, tenta de lá, com uma fita amarrada no eixo da roda mesmo, o carro saiu do buraco.

Mas, e agora? O que fazer?

Luan confirmou o que o Seu Osni já tinha avisado, que o desafio da estrada ainda estava por vir, com muitos outros trechos de lama pela frente. 

E que a dificuldade maior não era subir as lombas, e sim descer as tortuosas e escorregadias encostas ladeadas de pirambeiras (ou peraus como eles usam falar na região).

O casal estava indo para Rio do Sul e eu aceitei sem pestanejar a proposta do Luan para ele dirigir o meu carro, enquanto a Greice levava a caminhonete. 

Sem a sua destreza na condução, teria sido impossível avançar! 

Pois ele conhecia cada pedacinho da estrada, cada curva, cada pedra e cada lomba. Sabia quando embalar e quando reduzir a velocidade. 

E tinha uma habilidade incrível para concatenar o uso do freio de mão com o do pedal, de forma a não travar as rodas do veículo. 

Além da aula de direção na lama, a prosa durante o trajeto também foi deveras interessante. 

E valeu um combinado para fazer com eles a travessia do Campo dos Padres em junho, algo que eu vinha almejando.


Aos “trancos e barrancos” conseguimos chegar até a ladeira final do início da estrada de chão que antecede o estacionamento, no cair da noite.

Onde uma descida ainda mais íngreme, mais tortuosa e muito mais perigosa, segundo eles, nos aguardava. 

Será que dava pra descer? 

Seu Osni, que até essa hora ainda acompanhava a gente, deu a ideia de descer com a caminhonete primeiro e, se fosse viável, Luan voltar de moto com ele para descer com o carro. 

Assim eles partiram... 

E eu e o Philipp, que não estava entendendo muita coisa, porque não fala português, ficamos no meio da estrada. Na mais completa escuridão, aguardando o que iria acontecer - ou não - em seguida.


Uma luz no meio da escuridão

Dali a pouco, do nada surgiu a luz de uma lanterna atrás do carro e uma pessoa nos chamado. Roseli, moradora de uma casa próxima, vinha nos avisar que tinham ligado lá de baixo para dizer que não dava pra descer o carro em segurança naquelas condições. 

Pra gente nem tentar! 

Beleza, fazer o quê? 

O jeito era esperar amanhecer e torcer para o sol dar o ar da sua graça e minimamente secar a estrada, tornando-a transitável outra vez. 

Mas dormir aonde? 

Entre as opções de passar a noite dentro do carro - molhados, enlameados e um tanto gelados - ou armar a barraca no meio do lamaçal, Dona Armelinda, mãe da Roseli, nos ofereceu abrigo em sua casa. Ufa!!!


Das roupas não tirei foto, só das sandálias enlameadas de caminhar na estrada de acesso ao Soldados de Sebold (Foto de Érika Fernandes Pinto)


A gente tinha acabado de entrar na casa, depois de limpar os pés cheios de lama, quando chegou o Claudir, também filho da Dona Armelinda e dono do estacionamento lá embaixo (onde o meu carro deveria ter ficado se eu tivesse me atentado para as recomendações de segurança). 

Ele subiu a lomba de moto para garantir que a gente não ia mesmo tentar descer a ladeira e correr o risco de desabar nos peraus.

Além da possibilidade de me livrar da lama do corpo, tomar um banho e dormir no quentinho, Dona Armelinda nos ofereceu um jantar maravilhoso. 

Compartilhamos dos alimentos produzidos ali mesmo e de um tanto de histórias também, entre piadas sobre a situação do momento e contações de causos da vida.


Um campo cheio de que? 

Dona Armelinda é descendente de imigrantes alemães, então o papo foi pluri-linguístico. 

Hora em português (entre nós brasileiros), hora em inglês (quando eu falava com o Philipp), hora em alemão (quando ele tentava se comunicar com a Dona Armelinda) e hora em espanhol (que todo mundo entendia um pouquinho). 

Sem muito sucesso na comunicação entre o Philipp e a Dona Armelinda em alemão, ela se surpreendeu quando confirmei que ele era mesmo nativo da Alemanha. 

“Mas se ele é alemão, porque não sabe falar alemão direito?”, perguntou. 

Demos muitas risadas com isso, “o alemão que não sabe falar alemão direito”... 

Pesquisando depois em casa, soube que muitos dos imigrantes alemães que chegaram ao Brasil nos idos de 1900 não falavam o idioma oficial, e sim um dialeto originário do sudoeste da Alemanha. 

Talvez isso explique a dificuldade de compreensão idiomática de um alemão para outro.


Com Dona Armelinda e Roseli que nos acolheram em sua casa no Caeté, Alfredo Wagner/SC


Com a Dona Armelinda aprendi que tivemos várias levas de imigração alemã para o Brasil. 

Que aqueles que aqui chegaram fugindo da guerra, foram depois perseguidos por seus próprios conterrâneos. 

Tiveram que se esconder e ocultar sua identidade, ocupando áreas remotas e de relevo acidentado, como as que estão até hoje ali na região de Alfredo Wagner.

Ela também contou que, quando criança, era repreendida na escola se falasse algo em alemão. Pois eram forçados a aprender o português, ou melhor, o “brasileiro”, como se refere ao nosso idioma. 

Lendo sobre o assunto soube que descendentes alemães também foram vítimas de muita repressão durante a Era Vargas. 

Além de proibidos de se expressar na sua língua nativa, muitos tiveram propriedades confiscadas, foram presos arbitrariamente e até recolhidos em campos de concentração (sim, também teve disso no Brasil). 

Fatos desconhecidos de grande parte da sociedade em geral. E que eu mesma pouco sabia... 


São poucas as famílias atuais que residem ali na região do Rio Caeté, e quase todo mundo é parente. Vivem do cultivo da terra, plantando tomate e cebola, que é a principal produção do inverno. Também manejam gado e vacas leiteiras. 

Produzem um pouco de queijo colonial e mel, que vendem para quem passa ali no local. Broa ou pão de milho e a “chimiada” (pão com mel ou geléia caseira) estão entre as iguarias mais tradicionais.

No troca-troca linguístico da nossa prosa alguém comentou que vaca em alemão é kuh, o que gerou mais risadas, sobre estar em volta de “um campo cheio de cu”. 

Conversamos até altas horas, sem saber o que nos aguardava no dia seguinte. 

Mas agradecendo a benção de termos sido acolhidos por essa família tão amável e atenciosa.


CONTINUA NA PARTE 2

Érika Fernandes Pinto, 29/04/2023


Comentários

  1. Ameeeii sua 'contação de história' e agradeço a partilha dessa deliciosa e inspiradora aventura..! ✨💃💕✨

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