UM BAÚ DE LENDAS E HISTÓRIAS NA SERRA DA MANTIQUEIRA


Em meio às belas paisagens da Serra da Mantiqueira, na divisa dos estados de São Paulo e Minas Gerais, destaca-se o contorno único de um conjunto de rochas conhecido como Complexo do Baú. Uma formação natural de grande beleza cênica que é epicentro de muitas histórias e lendas, conhecida e admirada desde tempos remotos, tanto pelos povos indígenas que ali viveram como por bandeirantes, tropeiros, escravos e colonos que ali transitaram ou se instalaram. 
Localizado no Município de São Bento do Sapucaí/SP, o complexo é formado pelos cumes Ana Chata (com 1.770 metros), Bauzinho (1.829 metros) e Pedra do Baú (1.950 metros). O acesso se dá pela estrada que liga São Bento a famosa Campos do Jordão (no seu Km 21, no Bairro Campista). 


Suas escarpas de gnaisse atingem 350 metros de altura e 540 metros de comprimento, conformando abismos que parecem intransponíveis. Ao redor, matas nativas bem preservadas, campos rupestres, campos de altitude e araucárias dão vida à região, caracterizada também por um alto grau de endemismo, com espécies da fauna e da flora que ocorrem apenas ali. 


Apenas na década de 1940 a Pedra do Baú, o ponto culminante do complexo, “se permitiu” ser escalada pelos irmãos Cortez [1], em uma autêntica epopeia, realizada após décadas de tentativas.

Conta-se que desde criança Antônio Teixeira de Souza, nascido e criado em São Bento (sambentista), sonhava em escalar a fabulosa pedra. Obcecado por esse objetivo, passou a vida tentando tal proeza, sem encontrar sucesso. 

Até que aos 51 anos, teve um sonho em que lhe apareceu uma mulher idosa de cabelos longos que, fazendo uma reverência à sua família, lhe indicou um ponto na base da pedra que lhe levaria ao cume [2].

Foto: Rafa Fischer (Epic Run)

Conta a história que, em 12 de agosto de 1940, seguindo as indicações do sonho, Antônio e seu irmão mais novo, João, realizaram o objetivo acalentado desde a infância, percorrendo uma rota perigosíssima na face sul da pedra, o que exigiu coragem, destemor e uma vontade férrea. Sem equipamentos de escalada e de segurança, atravessaram paredões de rocha lisa de até 8 metros, trechos de vegetação com espinhos que lhes rasgaram as roupas e a pele, usando apenas as próprias mãos e troncos de árvores como apoio. 

O feito, testemunhado somente por parentes próximos, logo se espalhou, gerando grande repercussão na região. Mas a conquista era tão inacreditável que muitos duvidaram que os irmãos Cortez - meros moradores locais, e não montanhistas renomados -, tivessem realmente conseguido tal façanha.


Eles decidiram então, repetir a escalada, conquistando novamente o cume da Pedra do Baú em 19 de agosto do mesmo ano. Por volta do meio dia apontaram no topo da montanha erguendo uma bandeira do Brasil sendo, desta vez, aplaudidos por autoridades locais e dezenas de expectadores posicionados no Bauzinho, enquanto a banda da cidade tocava o Hino Nacional.

Conta-se que algum tempo depois, Antônio escalou a montanha com seus filhos e sua esposa, a primeira mulher a subir a Pedra do Baú, quando ainda não havia estruturas de apoio. 


A notícia da conquista dos irmãos Cortez se espalhou por jornais de todo o Estado e um rico empresário, sobrinho de Santos Dumont - Luiz Dummont Villares – contratou os irmãos para levá-lo até o topo da Pedra do Baú. 


Impressionado com a beleza que avistou, resolveu financiar a construção de uma via de escalada que ficou conhecida como Ferrata, composta por 602 degraus de ferro e pedra quebrada, para permitir que mais pessoas chegassem até o cume da lendária formação. Todo o material foi transportado no ombro dos trabalhadores e a via foi completada em 1943 [3]. 

Villares também comprou as terras do entorno da pedra para garantir a sua proteção e idealizou construir ali um dos primeiros abrigos de montanha do Brasil. 



Inspirado nas acomodações desse tipo que existiam nos alpes suíços, onde viveu sua juventude, o abrigo no Baú, inaugurado em janeiro de 1947, contava com diversas facilidades consideradas modernas para a época, como camas de campanha, sistema de captação e tratamento de água, para-raios, lareira, cozinha com utensílios e um grande sino de bronze, que ficava na frente do abrigo e devia ser badalado por todos os corajosos que conquistassem o cume

O abrigo, que demorou um ano e dez meses para ser concluído, dada a complexidade do transporte dos materiais até o alto, foi depredado em sucessivos atos de vandalismo. Villares chegou a reconstruí-lo, mas ele foi novamente destruído: as camas foram queimadas e o sino, jogado no despenhadeiro. Desistindo, ele mandou retirar o material, restando hoje no local apenas vestígios dos alicerces.


O topo das elevações mantém uma surpreendente quantidade de terra que sustenta até mesmo árvores de grande porte, algo atípico em formações desse tipo. No interior da montanha existem diversas tocas e cavidades, muitas ainda inexploradas, como se ela fosse realmente um cofre lacrado pela natureza, de onde emanam diversas lendas. 


Desde os primórdios que essa formação parece ter uma certa “intolerância” com visitantes inapropriados, não revelando seus segredos para qualquer pessoa e encontrando meios inusitados e astuciosos de protegê-los, como ser envolta por uma densa cerração ou fortes tempestades que surgem abruptamente. Assim, a magia do Complexo pode passar desapercebida... 




Mas que tesouros e mistérios guarda, enfim, esse baú?
Conta-se que os índios que habitaram a região chamavam a formação de Embahú, que significa “ponto de vigia” em tupi-guarani, dada a sua proeminência na paisagem e a visibilidade que oferece da região. Diz-se que o complexo, além de oferecer uma maravilhosa vista 360 graus, pode ser avistado de 52 municípios do seu entorno. 
Há histórias que remetem ao período do início da colonização, quando a Pedra do Baú foi chamada de Canastra pelos tropeiros, em referência a um tipo de caixa grande e com lacre que era utilizada para guardar pertences preciosos. 
Uma lenda conta a história de um índio gigantesco que teria salvo seus irmãos da exploração pelos bandeirantes no século 16, na região de Cruzeiro. Após o ato heroico, o índio teria se deitado entre as árvores em um sono eterno, se transformando em uma grande rocha. Porém, tal qual “o gigante adormecido do Rio de Janeiro” [4], este também estaria pronto para despertar e defender a terra prometida da Serra da Mantiqueira.
Moradores da região contam que no topo da Pedra do Baú havia uma lagoa onde, nas noites de lua cheia, aparecia uma bela mulher de cabelos dourados e vestida de branco, cantando lindas canções que atraíam quem por ali passasse. Assim como a Alamoa da Ilha de Fernando de Noronha [5], a “mãe do ouro”, como ficou conhecida nas lendas, também vigiava um grande tesouro e aqueles que se aproximassem dele desapareciam misteriosamente sem deixar vestígios. 

Uma das lendas mais populares, no entanto, conta que os cumes do Complexo do Baú representam três irmãos que viraram rocha após serem amaldiçoados por causa de um amor proibido. Existem diversas versões da história, mas em geral elas contam que Monte Barão, o irmão mais velho, de porte físico invejável e extrema bondade, decidido a seguir sua fé e devoção, teria se retirado do convívio social com outros seres humanos indo viver naquelas paragens onde levava uma “vida santa”. 

Foi acompanhado na empreitada por suas duas irmãs mais jovens, Silvané e Ana. A primeira era uma mulher lindíssima, com atributos tipicamente femininos avantajados. Muito vaidosa, passava horas se admirando no espelho das águas. Já a outra irmã, mais baixa e desprovida de tais atrativos, foi apelidada de “Ana Chata”, no que podemos considerar um exemplo de bulling lendário. 


Conta-se que Monte Barão, começou a se sentir atraído por Silvané depois de vê-la banhando em um lago. Dominado pela paixão e, inflado de desejo, se deixou levar pelos "sentimentos impróprios" e se declarou. A confissão foi testemunhada por Ana, que amaldiçoou os irmãos pela trangressão. 


Nesse momento, a natureza interveio. Dizem que uma grande explosão de energia acontece toda vez que uma lei cósmica é quebrada. O céu escureceu como noite, trovões ecoaram por toda a paisagem e um grande vulcão entrou em erupção. Os três irmãos, alcançados por um poder sobrenatural, foram metamorfoseados em pedra, destinados a permanecerem unidos como família, porém sem se tocar, por toda a eternidade.


Das três pedras que compõem o complexo, Bauzinho seria Silvané, uma formação de formas exuberantes, mas de fácil acesso (apenas 10 minutos de caminhada a partir do estacionamento na base), de onde se tem uma vista privilegiada dos grandes paredões da Pedra do Baú. Esta, por sua vez, seria o Monte Barão, a despontar imponente e aparentemente inacessível a quase dois mil metros de altitude. Tal qual o Corcovado na figura do Gigante de Pedra das montanhas do Rio de Janeiro [4], algumas versões das histórias consideram a Pedra do Baú também um "falo cósmico" a receber e emanar energias do universo. 

E um pouco mais ao lado estaria Ana Chata, a irmã mais nova, culpada de lançar a maldição sobre os dois, transformada em um rochedo arredondado e mais baixo. 

Várias imagens religiosas ali colocadas em diferentes épocas desapareceram. Mas isso não impediu que o local se tornasse destino não só para montanhistas, mas também de peregrinos. Registra-se que em 1945, o local foi benzido pelo bispo de Taubaté. 


Em uma cavidade profunda e de difícil acesso - denominada Gruta de Nossa Senhora de Lourdes - foi colocada uma imagem santa. Dizem que a água que escorre por suas paredes é milagrosa, mas que quando a imagem da virgem é retirada do local, a fonte seca.

Conta-se que na base da parede de pedra há uma toca sem oxigênio, pois as velas e tochas se apagam quando nela se adentra. Embora seja utilizada como abrigo por muitas pessoas, pouco se conhece do seu interior, pois o túnel afunila depois de uns 20 metros e as lanternas iluminam apenas uma densa neblina. Dizem que ali se forma um abismo escuro que não tem fim, pois não se escuta o barulho das pedras lançadas atingindo o fundo. 

Essa e outras histórias contadas por moradores da região foram registradas no livro Pedra do Baú - um mito, uma maravilha, uma justiça, de Antonia Isaura Aparecida de Lima Silva, lançado em 1988 [6], que também apresenta diversas fotografias históricas da região. 
E, mais recentemente, algumas lendas foram também reunidas em uma belíssima coletânea sobre a Serra da Mantiqueira, do fotógrafo e pesquisador Ricardo Martins. A obra, intitulada Amantikir: a serra que chora, traz fotografias das paisagens e dos personagens que retratam a alma dessa cordilheira senhora do tempo, de mais de 66 milhões de anos [7]. 
O Complexo do Baú é utilizado na atualidade para a prática de diversas modalidades esportivas. Além de caminhadas, mountain bike, saltos de paraglider e asa-delta, é uma das “mecas” da escalada no Brasil, com mais de 30 vias de diversos graus de dificuldade técnica e algumas big walls - rotas longas, que exigem pernoite na pedra. 
Um atrativo de grande potencial que permanece, no entanto, ainda sem muita infraestrutura de apoio turístico. O que, de certa forma, contribui para "selecionar" o público que ali chega. 
A região foi declarada Área de Proteção Ambiental pelo município em 1987, conservando um raio de 4 km a partir da base, com limitações de acesso e ocupação. Em 2010, foi criado o Monumento Natural (MONA) da Pedra do Baú, uma unidade de conservação estadual com 3.154 hecatres, para proteger esse marco de importância histórica, cultural, natural e geológica. Um conselho formado por várias organizações ajuda a traçar diretrizes e metas para a conservação e a utilização do MONA e um plano de manejo está em fase de elaboração.

Diz-se que a adversidade estimula o crescimento espiritual e que a natureza do tempo a tudo supera. Espera-se que, diante desse cenário cooperativo de gestão, padrões de comportamento ultrapassados possam ser abandonados e uma nova forma de interação dos seres humanos com o Complexo do Baú possa ser construída, alicerçada sobre princípios adequados, com humildade para sacrificar ambições que podem profanar os segredos da montanha e com respeito para adentrar nos seus mistérios.


Histórias como a da Pedra do Baú nos lembram de não duvidar do poder do cosmos para solucionar as contendas com sabedoria, lembrando que a qualidade da ajuda que recebemos do universo é definida pela qualidade daquilo que ofertamos. 


Que a atividade turística nesse local possa renascer e crescer com responsabilidade e consciência para que as montanhas mágicas da Serra da Mantiqueira cumpram a sua missão de encanto e beleza.

E aos desbravadores das montanhas que sabem reconhecer o verdadeiro valor que emana além das paisagens, dedico.  


Érika Fernandes Pinto
Itajaí, 19 de novembro de 2019


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Notas de esclarecimentos:
[1] Antônio Teixeira de Souza e João Teixeira de Souza eram conhecidos como "irmãos Cortez" em referência ao sobrenome da avó paterna, figura influente na região. 
[2] Há diversas versões da história do sonho, mas elas apresentam esses elementos em comum. 
[3] A primeira descida pela face norte, mais íngreme e exposta, de rocha limpa, foi feita também por Antônio, em 1945. Essa via também recebeu "escadinhas" posteriormente. 
[4] Ver post anterior aqui no blog.
[5] Ver post anterior aqui no blog.

Fontes e referências:
[6] Livro: Pedra do Baú - um mito, uma maravilha, uma justiça. Antonia Isaura Aparecida de Lima Silva, 1988 (Bianchi Editores)
[7] http://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2015/03/fotografo-reune-paisagens-e-lendas-da-serra-da-mantiqueira-em-livro.html
https://www.saobentodosapucai.sp.gov.br/site/historia-pedra-do-bau/

Comentários

  1. Como sempre uma viagem cheia de encanto e muito bem narrada!

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  2. Incrível como um único local pode abrigar histórias tão diversas!!

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