NORONHA: UMA ILHA CERCADA DE LENDAS E HISTÓRIAS POR TODOS OS LADOS
Localizada no Oceano Atlântico, a mais de 350 quilômetros do Brasil continental, encontra-se uma ilha dos sonhos, um dos destinos turísticos mais desejado dos brasileiros — Fernando de Noronha.
Esse território ultramarino encontra-se vinculado administrativamente ao Estado de Pernambuco, mas está mais próximo da capital do Rio Grande do Norte, Natal (360 km) do que do Recife (545 km).
Noronha, na verdade, não é uma ilha. E sim um arquipélago formado por 21 ilhas, ilhotas e rochedos de origem vulcânica que somam uma área de terra de 26 km².
Elas são as partes visíveis de uma grande cadeia de montanhas submersas cuja base está cerca de 4 mil metros abaixo do nível do mar, e que têm uma origem estimada em milhões de anos.
Noronha tem muitas histórias. Mas a ilha que já foi capitania hereditária, abrigou um presídio, serviu de base militar, virou área protegida e hoje atrai turistas de todo o mundo, também é um lugar cheio de mistérios.
A Vila dos Remédios - único núcleo urbano da região — está localizada na ilha principal, que tem 10 km de comprimento e 3,5 km de largura no seu ponto máximo (somando 17 km2).
Nela vivem cerca de 2.900 pessoas, remanescentes de ocupantes de diversos períodos históricos. Uma população eclética que congrega descendentes de militares, de presos políticos, de pessoas destacadas para prestarem serviços locais e, mais recentemente, de turistas que, encantados com o lugar, por lá resolveram ficar.
Noronha foi palco de ataques e ocupações de povos provenientes de diferentes países. Isso contribuiu para formar uma cultura própria na ilha, meio cosmopolita, sujeita à influência de crenças, mitos e lendas de diversas partes do mundo, que ganharam contornos próprios com os temperos da cultura local.
O arquipélago foi uma das primeiras terras encontradas no Novo Mundo, registrado em uma carta náutica no ano de 1500. Sua ocupação por colonizadores é quase tão antiga quanto a do continente. Mas há controvérsias sobre a sua descoberta pelos europeus.
A versão mais aceita atribui tal feito ao navegador Américo Vespúcio, que em 1503 participou da segunda expedição exploratória à costa brasileira. Ela foi financiada por um fidalgo português chamado Fernão de Loronha - um “cristão novo” da coroa, que viria a se tornar um grande explorador de pau-brasil.
Registra a história que a nau principal da expedição atingiu um recife e naufragou perto da ilha maior. Sua tripulação e carga tiveram que ser resgatadas e, para tanto, Vespúcio ancorou no local, até então desabitado.
"O paraíso é aqui" - teria ele exclamado ao vislumbrar tantas belezas, conforme relato registrado em uma carta que ficou conhecida como Lettera - o primeiro documento histórico sobre o arquipélago. Vespúcio chamou a ilha de São Lourenço, em referência ao santo do dia 10 de agosto, data da aportagem, seguindo o costume das explorações portuguesas de nomear os locais de acordo com o calendário litúrgico.
O nome Fernando de Noronha foi adotado depois que o donatário da expedição, Fernão de Loronha, se tornou o seu primeiro proprietário, ao receber a área em doação, em 1504, como primeira Capitania Hereditária do Brasil. Fernão virou Fernando e "Noronha" seria um erro ortográfico comum de "Loronha".
Situada na rota das grandes navegações, a ilha foi utilizada como entreposto comercial, mas não veio a ter uma ocupação efetiva até os dois séculos seguintes.
Além dos portugueses, também tiveram seus momentos na ilha alemães, ingleses, holandeses e franceses. A vulnerabilidade a invasões motivou a ocupação definitiva do local por Portugal a partir de 1737, quando foi construído um complexo defensivo composto de dez fortificações - o maior sistema fortificado do século XVIII no Brasil.
A maioria desses fortes estão preservados, ainda que parcialmente, como a Fortaleza de Nossa Senhora dos Remédios - cujas ruínas foram tombadas (em 1937) pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
A maioria desses fortes estão preservados, ainda que parcialmente, como a Fortaleza de Nossa Senhora dos Remédios - cujas ruínas foram tombadas (em 1937) pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Em 1739 a ilha se tornou uma colônia penitenciária para presos condenados a penas longas, falsificadores de notas e moedas e grupos peculiares considerados degredados, como os ciganos - tidos como “vadios” (em 1739) -, os revolucionários farroupilhas - tratados como “traidores” (em 1844) e os capoeiristas, rotulados de “desordeiros” (em 1890).
Os presidiários formaram a mão-de-obra que ergueu o patrimônio edificado e o sistema viário que interligou as vilas e fortes de Noronha. Conta-se que as condições em que viviam eram péssimas e o regime penitenciário local, dos mais cruéis. A prisão possuía celas solitárias e leitos de pedra nos quais os prisioneiros mal podiam se movimentar.
Enquanto em 1844 havia menos de 200 prisioneiros na ilha, em 1885, a população carcerária chegou ao auge, com mais de 2.300 presos. Para mantê-los sob controle eram impostos castigos exemplares àqueles que causavam algum incômodo, incluindo açoites e torturas no tronco.
Muitas foram as acusações de abuso e má administração feitas aos presídio à época. Um relatório dos ministros da guerra, em meados do século XIX, cita que “repugnava aos sentimentos de humanidade e aos preceitos mais triviais de decência a prática bárbara de privar a estes infelizes até o indispensável para se alimentarem e cobrirem sua nudez".
Uma reportagem da revista O Cruzeiro, de 1930, descreveu o presídio como "um fantasma infernal para esses proscritos da sociedade", que viviam completamente alheios ao que se passava no resto do mundo, apesar do governo alegar que proporcionava aos presos "uma vida saudável de trabalho e de conforto”.
Em 1938 o Arquipélago foi cedido à União para a instalação de um presídio político destinado "à concentração de indivíduos reputados como perigos à ordem pública ou suspeitos de atividades extremistas”.
Em 1942 tornou-se território federal administrado pelos militares. Durante a II Guerra Mundial, uma aliança com a marinha norte-americana levou à instalação de uma base de apoio na ilha e do aeroporto, que passou a operar a rota aérea Natal-Dakar. Casas pré-moldadas foram construídas para abrigar a superpopulação de mais de 3 mil expedicionários que ali viveram nessa época.
A prisão de Noronha foi fechada somente em 1957, quando o arquipélago foi visitado pelo então presidente Juscelino Kubitschek. Entre essa data e 1965, houve uma nova presença americana na ilha, com a instalação de um Posto de Observação de Mísseis Teleguiados.
A primeira pousada para turistas foi aberta em 1972. Mas a administração militar seguiu até 1988, quando por força da Constituinte o arquipélago foi reintegrado ao Estado de Pernambuco, se tornando um distrito estadual.
A fim de evitar fugas e dificultar esconderijos para os presos, a vegetação original da ilha foi sistematicamente derrubada durante todo o histórico da sua ocupação. Por essa razão, são poucos os locais onde restou alguma cobertura vegetal original.
Mas desde a época colonial Noronha desperta um grande interesse científico. Cientistas ilustres visitaram o arquipélago, descrevendo sua biodiversidade em trabalhos memoráveis, como o capitão Henry Foster, em 1828.
O naturalista Charles Darwin, pai da Teoria da Evolução das Espécies, lá esteve em 1832 e suas experiências registradas em diário, foram publicadas na obra The Voyage of the Beagle.
No século XIX, também artistas como os franceses Debret e Laissaily registraram em tela as suas belezas naturais de Noronha.
O arquipélago abriga diversas espécies da fauna e da flora endêmicas e ameaçadas de extinção. Essa é uma área singular de concentração de golfinhos rotadores (Stenella longirostris), que se reúnem diariamente na Baía dos Golfinhos – considerada o lugar de observação mais regular da espécie em todo o planeta e palco de apresentações desses animais com saltos espetaculares que parecem coreografados.
Em 1988 foi criado o Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, com 11 mil hectares, englobando 70% da área do arquipélago. Isso ajudou a preservar parte do patrimônio natural primitivo enquanto a ilha se transformava em uma concorrida atração turística, difundida internacionalmente.
Além da rica fauna e flora subaquáticas, das baías ideais para mergulhos, das praias que ostentam títulos de mais bonitas do mundo, das espetaculares falésias e das famosas ondas tubulares que atraem surfistas de todos os cantos, Noronha é também uma ilha cercada de lendas por todos os lados.
O órgão genital do homem virou o Morro do Pico – que com 323 metros de altura é o ponto mais alto da ilha.
E os seios da mulher foram transformados no Morro Dois Irmãos, formações rochosas na Praia da Cacimba do Padre, que recebem esse nome por estarem lado a lado e possuírem praticamente a mesma forma.
Muito famosas entre os ilhéus também são as histórias da Alamoa - uma belíssima mulher loira, soberana de um reino encantado que teria existido em Noronha antes da chegada dos navegadores europeus.
Rainha de um grande castelo que guardava muitos tesouros, reza a lenda que ele foi transformado no majestoso Pico de Pedra depois que as caravelas começaram a singrar os mares e ultrapassaram a linha do Equador, aportando nesse território. Conta-se que a Alamoa, no entanto, ainda vagou por muitos anos na ilha, aparecendo em determinadas noites para seduzir homens, e levando os desavisados à morte.
Reza a lenda que a assombração surge nua, com o corpo coberto apenas por uma cabeleira que se alonga quase até o chão, como a encarnação do desejo, fascinando os incautos e atraindo-os para a sua morada no alto do Morro do Pico. Quando a vítima vem a abraçá-la, entretanto, a linda e sedutora mulher se transforma em uma caveira com olhos faiscantes de maldade, impelindo os jovens apavorados a se atirarem do morro, caindo no oceano ou se despedaçando nos arrecifes.
Outras versões da lenda narram que uma fenda se abre na elevação montanhosa engolindo aqueles seduzidos pelos seus encantos. Fala-se também de estranhas luzes avistadas a sair e entrar nesse pico.
A palavra Alamoa parece ser uma corruptela de “alemã” e algumas fontes indicam que esse mito pode ter origem no período em que os holandeses dominaram o arquipélago no século XVII.
Em épocas mais recentes, parece que a Alamoa vestiu roupas e deu lugar à lenda da “Mulher de Branco”, uma aparição que surge à noite a pedir carona aos motoristas dos poucos carros que circulam na ilha.
Mas não são apenas as louras que tem vez nas lendas de Noronha. Outras histórias falam de uma Cigana, uma morena de rara beleza, que guarda um rico tesouro deixado pelos holandeses dentro de um caixão de ferro e cobre enterrado nas proximidades de um cajueiro. E que costuma assustar quem por ali passa à noite.
Nas belas praias de Fernando de Noronha também ocorrem muitas coisas estranhas. Conta-se que na Praia do Sueste são ouvidos gemidos apavorantes e que ela é morada de um monstro marinho que emerge da água à noite e fica parado como se fosse uma ilhota, surpreendendo pescadores inexperientes que, sem saber, subiriam nas costas do bicho sendo levados para alto mar.
Em um lugar chamado Pesqueiro da Sapata, conta-se que às vezes aparece à noite um homem de estatura gigante usando um chapéu preto que lhe esconde o rosto. Ele joga o anzol no mar, fisga com facilidade vários peixes grandes e desaparece de repente. Os pescadores que lá estiverem não conseguem apanhar nada até nascer o dia.
Há ainda a lenda da Cacimba do Padre, que fala de um capelão do presídio que, no século XIX, descobriu a melhor a fonte de água potável da ilha. Ela teria sido usada durante muitos anos e depois, esquecida entre as ruínas da casa onde o religioso viveu, próxima a uma bela praia de areias brancas. Conta-se que à noite o fantasma do padre aparece no lugar, montado em uma mula branca, e vai até a cacimba, como a vigiá-la. Na tradição popular dos ilhéus, quem bebe dessa água jamais esquece Noronha e sempre volta ao lugar.
Essas e outras histórias do arquipélago foram retratadas em livros de diversos autores. Elas foram também tema do enredo da Escola de Samba da Mangueira, no Rio de Janeiro, em 1995, quando a apresentadora Angélica, da Rede Globo, adentrou na Marquês de Sapucaí encarnando a Alamoa.
As lendas de Noronha podem virar Patrimônio Imaterial, um projeto defendido pela pesquisadora Marieta Borges, que registra as histórias de Noronha há mais de 40 anos e publicou dois livros sobre esse legado [1]. Caso a proposta avance, será o primeiro reconhecimento desse tipo no Brasil.
Eu estive em Noronha com minha família há alguns anos. Jamais esquecerei de uma das cenas mais bonitinhas da infância do meu filho, quando ele, munido de máscara e snorkel, mergulhou pela primeira vez nas águas de uma das suas baías. E quase se afogou tamanha a euforia ao vislumbrar uma tartaruga marinha, exclamando emocionado e ainda cuspindo água, que parecia estar sonhando e entrando no “mundo do Nemo”. Foram dias mágicos que deixaram na nossa memória magníficas imagens e vivências.
Mas por incrível que pareça, morar no paraíso nem sempre é fácil.
O “ilhamento” parece ter sérios impactos na saúde mental das pessoas, como me contou um colega médico que lá morou por alguns anos. Alcoolismo, ansiedade, depressão e algumas doenças psicológicas e psiquiátricas graves estão entre os principais problemas de saúde pública identificados na população localmente. Efeitos que levam alguns a apelidar a ilha de “neuronha”.
O crescimento do turismo e da ocupação na região também trouxe diversas consequências negativas para as condições ambientais da ilha, que enfrenta problemas de acúmulo de resíduos, favelização, falta de água, desigualdade social, introdução de espécies invasoras e perda de habitat das espécies nativas.
Para manter uma boa reputação é necessário ter consciência do próprio valor e não se deixar depreciar perante os olhos alheios. Faço votos de que os moradores e os visitantes de Noronha, conscientes do valor inestimável desse patrimônio, saibam honrar determinados princípios para manter o seu ambiente equilibrado.
É preciso aprender o que atrair e o que repelir, não deixando vingar iniciativas que não respeitem esse espaço sagrado e dispensando aqueles que apenas desejam sugar suas energias e explorar suas riquezas sem oferecer nada em troca.
Que todos que interagem com essa ilha encantada possam ouvir o chamado dos oceanos e a canção de ninar das marés, mergulhar nas águas do tempo e colher as respostas que os guiarão por caminhos de sabedoria.
Que a compreensão das raízes da história de um lugar ajude a recordar os seus poderes e empregá-los para planejar para onde se deseja realmente ir.
Salve Noronha!
Cambará do Sul, 12 de novembro de 2019.
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Fontes e referências:
[1] Marieta Borges. Livros “Fernando de Noronha – Cinco Séculos de História” e "Lendas e Fatos Pitorescos de Noronha”.
Roberto Beltrão, 2017. Site O Recife Assombrado. http://www.orecifeassombrado.com/assombracoes/lendas-de-fernando-de-noronha/
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