O BÚFALO BRANCO DE YELLOWSTONE: INSPIRAÇÕES PARA UMA NOVA ERA DA CONSERVAÇÃO

Reprodução de uma imagem do Búfalo Branco

No solstício de inverno no Hemisfério Sul (20 de junho), gravei um vídeo explicando as simbologias dessa estação e comentei sobre a profecia do renascimento do Búfalo Branco, animal sagrado nas tradições dos povos nativos norte-americanos. 

(Assista no Canal Valores Culturais da Natureza - Youtube AQUI)

Para minha surpresa, alguns dias depois me deparei com a notícia do nascimento de um bezerro branco no Parque Nacional de Yellowstone, nos EUA.

Quase não pude acreditar!

Esse acontecimento inspirou a conexão de algumas histórias fascinantes - de profecias ancestrais com animais e lugares sagrados à história da criação das áreas protegidas no mundo. 

Passando, ainda, pela complexa questão do reconhecimento da profunda relação que muitos parques nacionais têm com povos ancestrais e atuais.

Vamos explorar juntos essa trajetória rica e instigante?


Selo dos EUA referenciando o bisão como animal nacional.

O grandioso ícone das Américas

O bisão norte-americano (Bison bison), comumente chamado de búfalo pelos povos desse continente, é o maior animal terrestre nativo das Américas na atualidade. 

Declarado "mamífero nacional" em 2016 com o National Bison Legacy Act, ele simboliza a herança cultural, a perseverança e a resiliência da nação americana.

Com impressionantes dimensões, podendo alcançar até 3,5 metros de comprimento e pesar até uma tonelada, esses magníficos seres são capazes de correr a velocidades de até 60 km/h e saltar verticalmente quase dois metros. 

Apesar de serem parentes do gado doméstico, os bisões mantêm um temperamento selvagem e indomado.

A combinação de agilidade, velocidade e força torna extremamente difícil contê-los com cercas e arames.

O salto de um bisão.

Historicamente, esses majestosos animais formavam grandes manadas que se estendiam pelas vastas planícies e pradarias da América do Norte. 

Manada de bisões nas pradarias norte-americanas.

Para os povos nativos da região, os bisões eram a principal fonte de subsistência, fundamentais para sua sobrevivência. 

Praticamente todas as partes do animal eram aproveitadas. A carne servia de alimento, a pele e o couro eram utilizados para confeccionar roupas, sapatos e abrigos, enquanto os cascos, ossos e chifres se transformavam em armas e ferramentas. 

A gordura era usada como combustível e os tendões para fazer cordas, totalizando mais de 300 usos registrados.

Além disso, os bisões eram – e ainda são – um símbolo sagrado para os povos nativos norte americanos. 

Reverência ao bisão como animal sagrado.

Sua importância espiritual era vital, figurando como elemento central em cerimônias e na cosmovisão dessas culturas ancestrais. 

Os bisões são considerados a representação de Wakan Tanka na Terra, o Deus Supremo ou Grande Espírito. 

As caçadas representavam um desafio significativo para os indígenas, especialmente antes da introdução dos cavalos e das armas de fogo

Exigiam estratégias elaboradas para se aproximar dos animais sem serem vistos, espantá-los sem serem pisoteados e encurralá-los na beira de penhascos, levando-os a despencar.

Estratégias ancestrais de caça aos bisões.

Essa verdadeira odisséia de caça refletia a engenhosidade e a coragem dos povos originários, que desenvolveram modos de vida intimamente relacionados com as paisagens e seus elementos naturais.

Durante pelo menos 11 mil anos, indígenas e bisões coexistiram em um processo harmonioso de co-evolução, estabelecendo uma relação de respeito e interdependência.


O começo do fim

Com o início da colonização nos anos 1800, no entanto, esse cenário começou a mudar drasticamente. 

A população desses majestosos animais foi sendo paulatinamente reduzida devido à caça comercial indiscriminada, à destruição de seus habitats naturais e propagação de doenças. 

No final do século 19, por volta de 1880, os bisões estavam praticamente extintos. Dos estimados 30 a 60 milhões que existiam no início do século, restaram menos de 300 em todo o país.

"Montanha" de crânios de bisões abatidos pela caça comercial.

Mas os bisões não foram os únicos afetados com esse processo. 

A eliminação desses animais foi parte de uma estratégia colonial deliberada. 

Além de serem considerados incompatíveis com a cultura do gado doméstico que se buscava introduzir no território, sabia-se que eles eram fundamentais para a sobrevivência dos povos nativos. 

Erradicá-los, então, era uma forma de exterminar também os indígenas - ou pelo menos restringir sua presença a reservas delimitadas, subjugando-os à dependência do governo.

Na região do Parque Nacional de Yellowstone, em 1902, restaram apenas 23 bisões, confinados na área de Pelican Valley

Apesar desse número drasticamente reduzido, Yellowstone foi o único lugar onde eles sobreviveram em liberdade. 

Os bisões sim, mas os indígenas não...


O Parque Nacional de Yellowstone foi criado em 1872, inspirado na noção de wilderness, uma natureza selvagem sem gente, intocada, com maravilhas naturais reservadas para o desfrute turístico. 

Antes da criação do parque, dois tratados do governo dos Estados Unidos (em 1851 e 1868) destinavam a região a tribos locais. 

Mas eles foram sumariamente ignorados e desrespeitados, e os indígenas passaram a ser considerados “invasores” no seu próprio território. 

Isso representou o começo do fim da presença indígena na região.

Logo no início da implementação do parque, houve uma determinação de remover os indígenas da área, acreditando que eles seriam um impedimento para o desenvolvimento do turismo. 

Nos anos seguintes, duas “guerras indígenas” ocorreram e o Exército manteve um patrulhamento constante na região por mais de três décadas, afastando todos os indígenas do território. 

Apenas um povo - os Shoshone ou Tukudika ("comedores de ovelhas") - residentes permanentes dessa região e simbioticamente ligados a ela, permaneceu no parque por sete anos após sua criação, sendo praticamente exterminado pela varíola.

Imagem dos Shoshones, última tribo residente no Parque Nacional Yellowstone

Registros indicam que em 1882, apenas dez anos após a criação do Parque, todos os grupos indígenas já tinham sido banidos do território. 

Em 1903, a pedido de Theodore Roosevelt - então presidente dos EUA e um entusiasta dos parques nacionais -, um monumental portal de pedra foi construído na entrada norte do parque com os dizeres “para o benefício e o prazer do povo”, retirados da lei que criou o parque. 

Roosevelt Arch no Parque Nacional Yellowstone

Mas os indígenas não estavam incluídos nesse conceito de “povo”.

Se espalharam mitos de que as tribos nativas nunca tinham vivido ali por "superstição". Teriam medo dos gêiseres abundantes na região e percebiam as saídas de vapor das fontes termais como sinais de deuses furiosos ou espíritos malignos

Dessa forma, a relação dos povos indígenas com essa área foi sendo deliberadamente apagada.


Revelações de "um velho passado novo"

Pesquisas arqueológicas realizadas em épocas mais recentes, entretanto, começaram a demonstrar justamente o contrário. 

Mais de 2 mil sítios arqueológicos indígenas foram registrados, inclusive perto das fontes termais. 

Um pesquisador que atuou nesse processo manifestou que a paisagem estava tão repleta de evidências ancestrais indígenas, que provavelmente em qualquer lugar onde se escavasse seriam encontrados registros.

E assim o mito da ausência indígena na área "virou vapor" - junto com a ideia de uma natureza intocada, sem interferência ou ação humana!

Paralelamente aos trabalhos arqueológicos, foram feitos também registros da história oral indígena. 

Nas línguas nativas, a região do Yellowstone é chamada de “Terra do Sol ardente”, “Terra dos vapores”, “Lugar de muita fumaça”, “Lugar de água quente”, "Terra Fervente" e "o Coração do Búfalo". 

E as histórias e tradições dos povos que ali viveram são tão ricas quanto a própria paisagem.

Muitas tribos entravam e saíam do território acompanhando o círculo das estações - ocupando as partes altas no verão e os vales no inverno.

Esse era um local não só de alimentação e refúgio, mas também sagrado. 

As montanhas de Yellowstone eram locais de prática da busca da visão - ritual de iniciação espiritual dos indígenas. E os gêiseres e fontes termais eram considerados abrigos de espíritos ancestrais, dotados de poderes medicinais.

Além disso, a região era utilizada para extração de obsidiana negra, um mineral vulcânico muito valorizado para a confecção de pontas de flechas, lanças e ferramentas, devido às suas bordas extremamente afiadas quando lascadas. 

Pedras provenientes do local chamado Obsidian Cliff foram encontradas a mais de 3 mil km de distância, evidenciando que Yellowstone era um importante local de intercâmbio de produtos entre as tribos.

Obsidian Cliff no Parque Nacional Yellowstone

Essa é uma história que só nas últimas décadas começou a ser revelada para o movimento conservacionista e a sociedade mais ampla. 

Durante a fase inicial da implementação do parque, a rica presença indígena ancestral foi ocultada, tornando essa revelação uma descoberta de "um velho passado novo". 

Desde então, ativistas e historiadores têm trabalhado para corrigir a narrativa da historiografia oficial sobre a área, reconhecendo a ancestralidade nativa e  , reconhecendo as nações indígenas como parte integrante e contínua nesse território. 

A administração do parque tem acolhido essa perspectiva, fazendo um esforço consciente para incorporar as vozes indígenas nas pesquisas e programas de gestão do parque, principalmente no manejo do bisão.

Algumas iniciativas de tratar as manifestações culturais indígenas como meros "adereços" turísticos foram duramente criticadas, dando lugar a uma nova abordagem de colaboração e compartilhamento na tomada de decisões. 

Busca-se construir um novo caminho que respeite e valorize verdadeiramente o legado indígena em Yellowstone, promovendo um envolvimento mais profundo e respeitoso.

Selo comemorativo dos 150 anos do Parque Nacional Yellowstone

O marco do sesquicentenário da criação do parque

Em 2022, o Parque Nacional de Yellowstone completou 150 anos, celebrando o início de um movimento expressivo em direção a uma nova era das áreas protegidas nacionais. 

Essa data foi adotada pelo Serviço Nacional de Parques (NPS) como um marco para a mudança de paradigma na gestão dessas áreas.

O programa intitulado Yellowstone Revealed reforçou o propósito de compartilhar a história ancestral e a presença indígena nesse território, destacando suas conexões profundas e ainda atuais. 

Em um evento épico, o NPS convidou líderes tribais para dialogar com os visitantes do parque e contar suas histórias. 

Uma série de tipis – abrigos tradicionais indígenas – foi instalada na Madison Junction para acolhê-los, simbolizando a reconexão e o reconhecimento da importância dos povos nativos na região.

Tendas características dos povos indígenas no Parque Nacional Yellowstone

Além do próprio NPS instruir os visitantes sobre o que vem sendo chamado de "a história completa do Yellowstone", foi inaugurado o Yellowstone Tribal Heritage Centerum espaço para que os indígenas interajam diretamente com os frequentadores do parque. 

Yellowstone Tribal Heritage Center no Parque Nacional Yellowstone

Membros das tribos afiliadas ao parque nacional podem entrar na área sem pagar a taxa, embora as atividades permitidas ainda sejam restritas. 

Atualmente, 27 tribos são reconhecidas como tendo conexões ancestrais e atuais com a área e os recursos do parque, embora alguns registros indiquem que esse número pode chegar a 49.

Com a proposta de Re-indianizar Yellowstone, está em curso um processo de transformação do apagamento histórico em inclusão social e cultural, com muitos desafios ainda a serem superados.

Mas voltando aos bisões...


Os bisões de Yellowstone e os conhecimentos sagrados indígenas

Em Yellowstone persistiu o único rebanho de bisões selvagens das pradarias norte-americanas que se manteve livre e geneticamente puro ao longo do tempo

Protegidos pelo Parque Nacional e os esforços de conservação da área, a população selvagem foi se recuperando. Estima-se que atualmente existam em torno de 5 mil bisões em Yellowstone.

Eles precisam ser manejados para não adentrarem nas fazendas circundantes, que criam gado. Mas os bisões de Yellowstone também vem sendo reintroduzidos em outras áreas protegidas e reservas indígenas. 

Isso vem permitindo a revitalização de práticas materiais e espirituais, como a Dança do Sol (Sun Dance), central para esses povos.


Sun Dance - cerimônia tradicional dos indígenas norte-americanos

Os ritos religiosos indígenas foram severamente prejudicados ao longo da história colonial, não só pela ausência dos búfalos, mas também por terem sido proibidos no século XIX. 

Apenas em 1978, uma lei nacional garantiu o direito desses povos a praticarem suas tradições.


A raridade e o significado do búfalo branco

A gestação dos bisões leva 285 dias, resultando em um único bezerro de coloração marrom-avermelhada. Em cativeiro, eles podem cruzar com vacas domésticas, gerando descendentes mais claros. 

No entanto, o verdadeiro bisão branco é uma condição rara, caracterizada por ter o pelo claro, mas o nariz, casco e olhos escuros, diferente das variações albinas, que possuem olhos rosados.

Para os indígenas norte-americanos, o búfalo branco é o ser vivo mais sagrado da Terra. 

Imagem que retrata a profecia da Mulher Búfalo Branco

O nascimento de um bezerro com essas características é um evento especial, relacionado a uma profecia de mais milenar da Ptesan Wi - a Mulher Bezerro Búfalo Branco (White Buffalo Calf Woman), que trouxe para eles os ensinamentos do  Grande Espírito e o Cachimbo Sagrado.

O nascimento de um desses animais especiais é interpretado como um sinal de recomeço do ciclo sagrado da vida e um aviso de que a Mãe Terra está doente. 

É o Grande Espírito trazendo a mensagem de que um despertar espiritual precisa acontecer para que a humanidade possa se curar, se unir e se harmonizar.

Mas isso não é visto como um mau presságio, e sim como uma força de esperança e renovação.


O renascimento do bezerro branco em Yellowstone

Em junho de 2024, um raro filhote de búfalo branco nasceu em Yellowstone. 

Uma das primeiras imagens do bezerro búfalo branco nascido em junho de 2024 no Parque Nacional Yellowstone

Ele foi avistado pela primeira vez no Vale Lamar no dia 4, registrado pelo fotógrafo e excursionista Jordan Creech, que testemunhou o nascimento do animal sagrado ainda na bolsa amniótica. 

Este é o primeiro registro de um evento assim nessa área.

Embora não existam estatísticas precisas sobre o tema, a última vez que se reportou o nascimento de um bezerro com essas características foi em 1994, em Wisconsin. 

Antes disso, o último registro datava de 1933. 

O bezerro de 1994 foi chamado de Miracle e, segundo algumas interpretações, marcou o momento em que o mundo começou a despertar para a questão do aquecimento global e das mudanças climáticas. 

Pouco antes, em um evento na ONU intitulado Cry of the Earth: the Legacy of the First Nations, líderes espirituais indígenas alertaram sobre a crise ambiental planetária e a necessidade de transformação da nossa forma de ser e estar no mundo.

Líder indígena em evento da ONU


É interessante notar que o novo bezerro branco de Yellowstone nasceu próximo ao solstício de verão no hemisfério norte, justamente quando os indígenas celebram a Dança do Sol, uma das suas cerimônias tradicionais mais importantes. 

Em 26 de junho de 2024, uma celebração reuniu diversos povos nativos da região para homenagear o novo bezerro, culminando com a cerimônia da sua nomeação. 

Ele foi chamado WAKAN GLI, que significa "o retorno do sagrado", na língua Lakota.

Cerimônia de revelação do nome do bezerro búfalo branco nascido no Parque Nacional Yellowstone
em junho de 2024

Um fato emblemático! Nas palavras de uma liderança indígena, parece que finalmente Yellowstone está recuperando a sua alma! 


Reescrever e ressignificar a história das áreas protegidas

Yellowstone não é só o parque mais antigo e mais famoso do mundo. É a jóia da coroa de um dos países mais poderosos no âmbito global.

Nele nasceu o modelo de conservação da natureza que pautou o sistema mundial de áreas protegidas.

Dessa forma, o que acontece ali influencia essas políticas, nacional e internacionalmente.

A ideia de reservar as maravilhas da natureza selvagem para usufruto público, entendendo como público as populações urbano-industriais (promovida por Teddy Roosevelt, John Muir e outros idealizadores desse modelo) acabou se espalhando. 

Ela foi exportada dos EUA para o Canadá, depois Austrália, Nova Zelândia, África... E chegou aqui na América do Sul, primeiro na Argentina, depois no Chile e no Brasil. 

Hoje, existem mais de 1200 parques nacionais espalhados em cerca de 100 países.

Isso deve ser bom, certo? 

O problema é que grande parte dos países seguiu esse modelo de parques baseados na noção de natureza intocada, levando à exclusão e violação de direitos dos povos originários e à desconexão entre cultura e natureza. 

Essa é uma história que também precisa ser revelada em muitos outros lugares.


O fato do primeiro parque nacional do mundo deixar de ser visto como uma paisagem selvagem intocada e começar a lançar luz sobre as inúmeras conexões humanas ancestrais e atuais com esse território é muito significativo.  

Reescrever a história desse grande ícone da conservação e contá-la com verdade é mais do que um ato de respeito com os povos originários. 

Isso é entendido como uma jornada de cura

Após mais de um século e meio de apagamento, marginalização e ignorância, busca-se, na mais famosa área protegida do mundo, construir e experimentar um novo modelo de gestão que não mais reforce padrões de colonialidade.

No entanto, os líderes tribais ressaltam que não querem apenas que sua história seja contada e respeitada. 

Eles reivindicam outros direitos de acesso e uso dessas áreas, para que possam reestabelecer suas conexões sagradas com suas raízes ancestrais.

O nascimento do bezerro branco nesse território é visto como um símbolo poderoso nesse necessário processo de transformação.


No Brasil, nossa história da conservação da natureza guarda muitos paralelos com a norte-americana. 

Os povos originários também foram vitimados, escravizados e forçados a sucumbir durante a era colonial e pós colonial, sendo apagados da história oficial de muitos parques que conformam seus territórios.

Desejo assim que as bênçãos do primeiro búfalo branco nascido em um parque nacional ajudem a restaurar o brilho dessa jóia da coroa, tornando Yellowstone novamente um farol para o mundo.

Mas dessa vez, pautado em estratégias de justiça regenerativa, que revigorem a gestão das áreas protegidas à luz de uma conservação decolonialabrindo caminhos mais emocionantes e gratificantes que entrelaçam cultura, natureza e espiritualidade.


Por Érika Fernandes-Pinto, 05/06/2024.


 

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