A GRUTA DO POÇO CERTO E SEUS SEGREDOS ANCESTRAIS


Gruta e Cachoeira do Poço Certo, Alfredo Wagner/SC (Foto de Érika Fernandes Pinto - Acervo SNS Brasil)

Em meio aos Sítios Naturais Sagrados, encontramos também lugares de natureza consagrados para o uso religioso.

Um exemplo disso é a Gruta do Poço Certo, localizada na zona rural do Município de Alfredo Wagner em Santa Catarina, no extremo sul da região do Vale do Itajaí.

Encravada na encosta do vale, a gruta é ladeada por uma bela cachoeira de 42 metros. 

Cachoeira do Poço Certo, Alfredo Wagner/SC
(Foto de Érika Fernandes Pinto - Acervo SNS Brasil)

Completam o cenário as montanhas ao fundo, como o imponente Costão do Frade, que demarca a divisa de Alfredo Wagner com Bom Retiro.

Morro do Trombudo, na divisa de Alfredo Wagner e Bom Retiro/SC (Foto de Érika Fernandes Pinto - Acervo SNS Brasil)

A Gruta do Poço Certo é uma jóia natural, um lugar mágico que encanta pela beleza estonteante e seus significados religiosos. 

Uma trilha de cerca de 350 metros e fácil acesso leva até o local, onde há um pequeno oratório com imagens santas, ladeado por bancos que acolhem os fiéis. 

Altar na Gruta do Poço Certo, Alfredo Wagner/SC
(Foto de Érika Fernandes Pinto - Acervo SNS Brasil)

O canto dos pássaros, o som da cachoeira e as réstia de sol que penetram em meio a uma vegetação exuberante complementam a magia do cenário.

Um lugar fascinante e abençoado, que nos envolve imediatamente em uma atmosfera de tranquilidade e paz.

Uma tradição centenária ou ancestral?

Conta a história que a gruta foi encontrada por um dos pioneiros na colonização alemã na região da Lomba Alta, sendo inicialmente utilizava para armazenar mantimentos e como fonte de água. 

Quando a guarda de víveres foi transferida para a parte mais alta, facilitando o transporte de mercadorias com mulas, uma pequena imagem de Nossa Senhora Imaculada Conceição foi colocada no local.

Como não existiam igrejas nessas regiões, alguns lugares na natureza serviam como refúgio para celebrações religiosas e práticas espirituais.

Essa tradição se perpetuou ao longo dos anos, consolidando uma relação de religiosidade com a gruta que já dura um século.

Mantida pelos descendentes da família Althoff, a gruta continua sendo utilizada pelos moradores locais, atraindo também visitantes de outras áreas.

Missas eram celebradas com regularidade no local até alguns anos atrás. Nela também são realizados eventos como casamentos e batismos.

Além da importância religiosa para os europeus colonizadores dessa região, é importante registrar que esse lugar foi também abrigo dos povos indígenas que habitavam essa região.

Registros arqueológicos, artefatos e até ossadas encontradas em cavernas e grutas dessa região evidenciam essa rica relação histórica. 

Tesouros subterrâneos

Parte desse acervo encontra-se resguardado no Museu de Arqueologia da Lomba Alta, idealizado por Altair Wagner, neto do fundador do Município. 

Foi somente após se aposentar que Altair começou a estudar a arqueologia e a geologia da região, desbravando as grutas e cavidades subterrâneas da região.  

Conhecido pela alcunha de "homem das pedras", suas pesquisas foram excepcionais e contribuíram para revelar muitos dos até então desconhecidos "tesouros subterrâneos" de Santa Catarina (registrou mais de 50 abrigos sob rocha e seis galerias). 

O museu foi fundado em 2002 e guarda um acervo precioso em duas estruturas. 

Museu de Arqueologia da Lomba Alta, Alfredo Wagner/SC
(Foto de Érika Fernandes Pinto - Acervo SNS Brasil)

A primeira delas é uma réplica da residência do patrono do município, Alfredo Henrique Wagner. 

A casa em estilo germânico-suíço conta a história desse pioneiro que dá nome à cidade. 

Ela guarda inúmeras fotos, documentos e objetos que pertenceram aos antigos colonos, entre louças, ferramentas, peças de vestuário e do mobiliário.

Ao lado dela, um prédio de três andares abriga o acervo arqueológico e numismático. 

Uma coleção de moedas antigas compõem o painel de entrada com o nome do museu. 

Painel feito com moedas antigas no Museu de Arqueologia da Lomba Alta, Alfredo Wagner/SC (Foto de Érika Fernandes Pinto - Acervo SNS Brasil)

E nos salões estão expostas diversas peças utilizadas pelos povos indígenas ancestrais, como pontas de flecha feitas de pedras e ferramentas líticas.

Acervo do Museu de Arqueologia da Lomba Alta, Alfredo Wagner/SC (Foto de Érika Fernandes Pinto - Acervo SNS Brasil)

O museu é mantido atualmente pelo Senhor Evanir Wagner, primo de Altair (que faleceu em 2021) e que foi seu auxiliar de pesquisa. 

Um entusiasta do tema, cheio de histórias para contar. 

Érika com Seu Evanir Walter, guardião do Museu de Arqueologia da Lomba Alta, Alfredo Wagner/SC (Foto de José Renato Angelis - Acervo pessoal)

Eu tinha um compromisso em Lages e não tive tempo de conversar o suficiente com ele, mas ficou o convite para voltar, conhecer melhor o acervo e apreciar também uma sapecada de pinhão.

Atrás do museu há ainda um bosque de árvores nativas como coquinho, uva do mato, uvaia, araçá, camarinha, cortiça, maracujá, goiaba lageana, jaboticaba, guaçatumba, ingá feijão, ingá macaco, araçá vermelho, figo do mato e amora preta.

Essas espécies frutíferas das matas da região, desconhecidas da maior parte da população, infelizmente estão se tornando cada vez mais raras com o intenso processo de conversão dessas áreas em monoculturas e pastos.

Bosque de frutíferas nativas da região atrás do Museu de Arqueologia da Lomba Alta, Alfredo Wagner/SC (Foto de Érika Fernandes Pinto - Acervo SNS Brasil)

Altair também é o autor do livro Alfredo Wagner: terra, água e índios, publicado em 2002, que explora a geografia, a arqueologia e a presença histórica dos povos originários dessa região.

Livro de autoria de Altair Wagner, idealizador do Museu de Arqueologia da Lomba Alta, Alfredo Wagner/SC (Foto de Érika Fernandes Pinto - Acervo SNS Brasil)

Um passado vivo

Os Povos Laklãnõ-Xokleng, Kaingang e Guarani, mencionados no livro de Altair como originários de Santa Catarina, no entanto, não são apenas parte do passado dessa região. 

Ainda encontra-se presentes nesse território, confinado em parcas terras indígenas, vivendo muitas vezes em situação precária. 

Eles têm se dedicado a restaurar a qualidade ambiental de suas terras, resgatar seus lugares ancestrais, fortalecer sua cultura viva e mostrar à sociedade sua presença histórica e atual.

Os Laklãnõ-Xokleng, além da ampliação dos territórios reconhecidos para usufruto dos indígenas, reivindicam, a revogação da lei que alterou o nome da Região Metropolitana do Vale do Itajaí para "Vale Europeu", em maio de 2024.  

Manifesto do Povo Laklãnõ-Xokleng contra a renomeação do Vale do Itajaí como Vale Europeu (Fonte: perfil @nadjaxokleng)

Os indígenas consideram essa iniciativa uma ofensa à memória dos seus ancestrais, vitimados por campanhas de genocídio empreendidas pelos chamados "bugreiros", que quase levaram esses povos à extinção.

Os bugreiros ou "caçadores de índios" atuavam à mando do governo e das empresas colonizadoras para "limpar" o território da "indesejável presença dos selvagens" para que elas fossem ocupadas pelos imigrantes europeus.

A literatura histórica descreve os requintes de crueldade desse processo, que perdurou pelo menos até a década de 1930. 

Enquanto os indígenas homens eram assassinados a tiros de espingarda e golpes de facão, tendo suas orelhas cortadas para serem trocadas por recompensas, as mulheres eram violentadas e as crianças sequestradas para servir de testemunho do feito das tropas. 

Bugreiros com crianças indígenas sequestradas depois do assassinato de seus pais
(Fonte: site do CIMI)

Eles não foram apenas "varridos" fisicamente do território. Foram também apagados da história e invisibilizados nas narrativas sobre a região, que ganhou fama pela estirpe européia. 

Tratados genericamente de "bugres", é raro encontrar pessoas que sabem seus nomes próprios e conhecem sua saga histórica e lutas atuais. 

Os Laklãnõ-Xokleng estão no centro da polêmica sobre o marco temporal - interpretação legislativa que define, grosso modo, que os povos indígenas só teriam direito de ter terras demarcadas nas áreas que ocupavam ou reivindicavam na data em que foi promulgada a nova Constituição Federal Brasileira, em 05 de outubro de 1988. 

Do outro lado estão os que defendem a tese do indigenato, que reconhece os processos de exclusão e confinamento forçado que muitos desses povos sofreram e permite que eles reivindiquem terras tradicionalmente ocupadas das quais foram esbulhados. 

Como proclamam as lideranças indígenas, seus marcos são ancestrais!

Aproveito então a oportunidade para honrar a memória dos povos originários que passaram e viveram nessas áreas, que guardam muitas histórias e segredos ocultados pela historiografia oficial. 

A Gruta do Poço Certo – como muitos outros locais desse tipo que existem no interior de Santa Catarina – também são lugares sagrados indígenas. 

Eles foram refúgios de seus antepassados, servindo como abrigo e, muitas vezes, também de esconderijo frente às perseguições sofridas com o início da colonização.

O cuidado com um local sagrado

A Gruta do Poço Certo encontra-se dentro de uma propriedade privada da Família Althoff. 

Segundo Fernanda, que recepcionou minha visita, ela pertenceu ao tataravô do seu marido, que instalou a primeira imagem santa no local.

Até alguns anos atrás, o acesso era livre, mas a visitação aumentou muito durante a pandemia e, com isso, também o acúmulo de lixo e atos de vandalismo.

A família instalou então uma estrutura para controle dos acessos, junto a uma pequena lanchonete que serve produtos coloniais da região. 

É cobrada uma taxa de R$10 por pessoa (crianças não pagam) para ajudar na manutenção e limpeza da área, realizada pela simpática Dona Elizete.

E o lugar segue muito bem cuidado.

A propriedade recebe visitantes diariamente e oferece também hospedagem no chalé Encantos da Serra. 

Um belo por do sol visto de um singelo "balanço infinito" instalado ao lado da lanchonete completa o passeio.

Balanço infinito ao lado da Lanchonete Poço Certo, Alfredo Wagner/SC (Foto de Érika Fernandes Pinto - Acervo SNS Brasil)

Natureza e espiritualidade

A Gruta do Poço certo é um exemplo notável de como natureza e espiritualidade podem se entrelaçar.

Um santuário de beleza e tranquilidade, testemunho da fé que continua a influenciar a vida na região, oferendo uma experiência enriquecedora de conexão com a natureza para todos que a visitam.

Rogo aos céus e a Nossa Senhora da Imaculada Conceição para que ela possa ser considerada não apenas como um "cemitério indígena" - como comumente retratado nas mídias sociais -, mas também como um legado vivo dos povos originários do nosso Brasil.

Por Érika Fernandes Pinto, 17/06/2024


Minha visita a esses locais foi realizada em 15/06/2024, com a ilustre companhia de José Renato Angelis e Sara Engels, a quem deixo um agradecimento especial. 

Esse texto integra a Série Sítios Naturais Sagrados por onde eu andei.

Érika na trilha da Gruta e Cachoeira do Poço Certo, Alfredo Wagner/SC (Foto de José Renato Angelis - Acervo pessoal)


Érika na Cachoeira do Poço Certo, Alfredo Wagner/SC (Foto de José Renato Angelis - Acervo pessoal)


José Renato Angelis e Sara Engels na Cachoeira do Poço Certo, Alfredo Wagner/SC
(Foto de Érika Fernandes Pinto - Acervo pessoal)


Como chegar

O acesso à Gruta do Poço Certo é feito pela BR-282 sentido Bom Retiro. 
Ela está a 125 km de Florianópolis e 15 km do centro de Alfredo Wagner.
Saindo da BR, são 6 km de estrada de chão em boas condições (Estrada Geral da Lomba Alta) até chegar à Lanchonete Poço Certo, a partir de onde se acessa a trilha.

Mais informações sobre o Poço Certo estão disponíveis no Instagram @grutadopococerto

Há também na localidade um restaurante que serve buffet de comida caseira @restaurantepococerto_aw

O Museu de Arqueologia da Lomba Alta também abre diariamente e mais informações podem ser acessadas pelo telefone (48) 991611134 (Seu Evanir).

Acesse AQUI o  manifesto Laklãnõ-Xokleng contra a renomeação do Vale do Itajaí e conheça um pouco da luta desse povo pela garantia dos seus direitos constitucionais e ancestrais.
Mais informações disponíveis na bio do perfil @nandjaxokleng







Comentários

  1. Belo lugar🫶🏻🌲💚

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  2. um lugar muito bunito para renovar as energias !!

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  3. Excelente artigo, parabéns!
    Retificando, na foto o morro da divisa entre os municípios, chama-se Costão do Frade, o Trombudo é outro morro às margens da BR-282.

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