AS NASCENTES DO VELHO CHICO E O SUMIÇO DO PADROEIRO DA ECOLOGIA

Placa que indica a nascente histórica do Rio São Francisco no Parque Nacional da Serra da Canastra/ MG.

Interligando o sertão brasileiro ao litoral, com mais de 2.800 quilômetros de extensão, o Rio São Francisco possui grande importância econômica, social, ambiental e cultural para os cinco estados e mais 500 municípios que atravessa. 
Com 168 afluentes, a bacia do terceiro maior rio do Brasil é fonte de vida e riquezas, proporcionando múltiplos usos, como abastecimento de água, irrigação agrícola, pesca, navegação e turismo. 
Chamado de Opará pelos indígenas e apelidado de Velho Chico pelos ribeirinhos, a história oficial registra que foi o navegador Américo Vespúcio o primeiro colonizador a vislumbrar a sua foz, em 4 de outubro de 1501. 
Na tradição católica esse dia é dedicado aos festejos de São Francisco de Assis, razão pela qual o rio foi batizado com o nome do santo.
Diversas bandeiras ao longo dos séculos XVII e XVIII seguiram sua rota para penetrar no interior do continente. 
Dessa época o São Francisco recebeu a alcunha de rio da integração nacional. 
Uma unificação territorial calcada, entretanto, em muitos conflitos e no extermínio de diversos povos indígenas que habitavam a região. 
Do tempo dos primeiros povoamentos colonizadores aos grandes empreendimentos de agricultura irrigada, usinas hidrelétricas e o polêmico projeto de transposição, os mais de 500 anos de exploração do rio e devastação da vegetação das suas margens deixaram suas marcas. 
E as águas do Velho Chico, já não correm como antes. 
Afluentes que eram perenes desapareceram ou estão morrendo, o mar entra cada vez mais pela foz do rio salinizando a região e a seca assola boa parte da sua bacia. 
Em 2014, a seca provocada por um longo período de estiagem causou muita apreensão, colocando em cheque a sobrevivência não só das pessoas, mas também da fauna e da flora da região [1].
Nem a nascente histórica do rio - situada em um vale a 1300 metros de altitude, dentro de uma área protegida - o Parque Nacional da Serra da Canastra (Município de São Roque de Minas/MG) – escapou ilesa

A origem das águas do rio

Conta-se que esse lugar era habitado por uma tribo indígena, e ali morava a bela Irati, enamorada de um bravo guerreiro, que partiu junto com outros homens da aldeia para enfrentar a ameaça de invasão dos homens brancos. 
Reza a lenda que os guerreiros que se colocaram em marcha para defender o território eram tão numerosos que suas passadas foram afundando a terra por onde passavam, formando um no sulco na trilha da caminhada, da qual jamais retornaram. 
Desolada com a perda do amado, Irati sentou-se em uma pedra e se pôs a chorar intensamente, por dias seguidos. 
Das suas lágrimas nasceu Opará, que significa rio-mar, na língua indígena - o curso d’água posteriormente batizado de Rio São Francisco [2].
Há mais de 40 anos se encontra assentado nesse lugar sagrado um altar com uma estátua do santo que dá nome ao rio, atração bastante procurada pelos turistas que visitam a região e destino de peregrinações religiosas regionais. 
Estátua de São Francisco nas proximidades da sua nascente histórica, no Parque Nacional da Serra da Canastra/MG.

Conta-se que nas noites de lua cheia o santo aparece para passear pelas belas paisagens da Serra da Canastra e cuidar dos animais locais, como o lobo-guará, o tamanduá-bandeira, o veado campeiro, a ema, entre outros [3].
Mas quem foi esse santo que se tornou uma referência tão importante no território nacional? 

A história do homem que virou santo

São Francisco é tido como o santo católico mais popular no Brasil, querido inclusive entre não católicos, e sua história é permeada por uma intensa mística. 
Mesmo para aqueles que não acreditam em santos, Giovanni di Pietro di Bernardone (seu nome de origem) representa, no mínimo, uma figura histórica singular e instigante. 
Nascido em Assis, na Itália, em 1182, filho de um rico comerciante, conta-se que recebeu o chamado para uma vida religiosa, após se compadecer com a situação de um leproso e beijá-lo, cobrindo-o com seu manto.
Depois disso, rompeu com o mundo de pompa e regalias materiais abdicando de sua herança e abandonando todos os seus pertences. Se despiu diante do pai em plena praça pública.
Além de seguir os votos tradicionais da igreja de obediência e castidade, Giovanni - adotando o nome de Francisco - incomodou o clero ao decidir viver o evangelho ao pé da letra. 
Assumiu também o voto pobreza, contrariando a ideologia eclesiástica da época. 
Usava vestes rústicas, andava com os pés descalços e pregava com palavras simples, não eruditas. 
Contrário a posses ou propriedades, mesmo as coletivas, aceitava comida suficiente apenas para o momento. 
E vivia em abrigos improvisados feitos com galhos, em cavernas e abrigos naturais, mantendo um ideário de total liberdade. 
Foi graças a um sonho que o Papa Inocêncio, adverso aos ideais franciscanos, reconheceu sua ordem religiosa, que viria a ter extraordinário sucesso. 
Revolucionário, Francisco criou o primeiro projeto religioso aberto tanto a homens como a mulheres.
Avesso a regras, hierarquias e normas, no entanto, acabou saindo da ordem que ele mesmo fundou para seguir seu caminho, viajando a pé, rezando e cantando.
E enchendo de felicidade os lugares por onde passou. 
Pacifista ao extremo, dizem que nunca repreendeu, acusou ou expressou desacordo a ninguém, contentando-se apenas em agir de forma diferente e mostrar um bom exemplo. 
Conseguiu com isso pregar o evangelho até mesmo entre os muçulmanos, com permissão de um sultão que se encantou com a sua mansidão e carisma. 
No meio do catolicismo, no entanto, foi tratado como herege, antes de ser proclamado santo. 
E muito de sua história se perdeu com a caça franciscana e a destruição de biografias e escritos sobre ele.  
Dizem que tinha a capacidade de se comunicar com os animais e nutria por eles tanto carinho que comumente é representado em imagens rodeado de pássaros, flores e outros seres das matas e campos. 
Sua famosa oração “Cântico das Criaturas” é uma das mais belas obras sobre o ideário do cuidado com a natureza em suas múltiplas formas. 
O que lhe rendeu também o título de Padroeiro da Ecologia.  

Fonte: Sue Betanzons Art

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, a qual nos é muito útil, úmida, preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo, pelo qual iluminas a noite, ele é belo robusto e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã a mãe terra, a qual nos sustenta, governa e produz diversos frutos, flores coloridas e ervas...

O Santo no parque

Paradoxalmente (ou por alguma ironia do destino), foi em nome da ecologia que o órgão ambiental que administra a área que protege as nascentes do Rio São Francisco tentou remover sua estátua e o altar em homenagem ao padroeiro. 
A ação fazia parte das propostas do plano de manejo do parque, por causa dos danos que a visitação vinha causando ao local, de solo frágil e suscetível a pisoteio. 
Tal fato foi impedido por uma liminar da Justiça Federal, resultado de uma ação civil pública. 
De acordo com notícias divulgadas na época, o juiz da causa em questão foi categórico ao afirmar que “a proteção das nascentes se resolve com ordenamento, e não com o descarte de um bem cultural”. 
E determinou que o órgão devolvesse a estátua do santo ao seu local de origem [4]. 
Muitas águas rolaram sobre esse caso, mas o fato é que o plano de manejo do parque foi revisto e a estátua foi reinstalada em um local próximo (especificamente 123 metros do anterior). 
Um ajuste feito para minimizar o impacto ambiental. 
Até onde se sabe, desde então, gestores ambientais, peregrinos, turistas e São Francisco convivem em harmonia...
Para além dos problemas socioambientais, das nascentes até sua foz o Velho Chico sempre esteve associado a diversas simbologias, conformadas pelas paisagens ligadas à memória das comunidades a ele relacionadas ao longo do tempo. 
E ainda guarda inúmeras belezas e histórias que se mantém vivas nas prosas, nos cantos, nas práticas e nos saberes daqueles que dele vivem e com ele convivem.

Meu querido São Francisco, rogai por nós! 
Que seu espírito inovador nos inspire a não nos emaranharmos nos próprios planos que criamos e a procurar novas alternativas para os impasses que se colocam diante do nosso caminho. 
E a ousar mudar aquilo que parece ser destinos fatídicos, com a convicção de que os bons exemplos fazem milagres. 

PAT ET BENE!!!
(Paz e Bem! – Saudação franciscana)

Érika Fernandes Pinto, 7/10/2019.



Fontes:

[1] http://g1.globo.com/mg/centro-oeste/noticia/2014/09/diretor-de-parque-diz-que-principal-nascente-do-rio-sao-francisco-secou.html
[4] http://dpu.jusbrasil.com.br/noticias/240710066/icmbio-e-impedido-de-retirar-estatua-de-sao-francisco-da-serra-da-canastra

Comentários

  1. Que delícia ler isso! Sou fã de carteirinha de Sao Francisco de Assis - e do Velho Chico também

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  2. Que São Francisco nos proteja de todo mal!

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  3. Respostas
    1. Obrigada, tem muito mais pela frente! O que não falta no nosso Brasil são lugares lindos e histórias inspiradoras.

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  4. Muito bem, Senhora Pesquisadora dos pontos sagrados de nosso Planeta!

    Viva o Rio São Francisco!

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  5. Tive a felicidade de realizar um projeto de Educação Ambiental em tida e extensão do Rio Sao Francisco de sua nascente ao Norte de Minas. Quanta satisfação! Quanto aprendizado! Que população maravilhosa! Dedicada ao Rio e ao seu valor.
    Em minha mente, não existe recordações melhores! Abençoado São Francisco!
    "História Natural de Peixes de Água Doce"

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    1. Olá Jeanine. Que bom saber que tem pessoas que se dedicam a essa nobre missão!!! Parabéns. Que as sementes lançadas pelo seu trabalho germinem, floresçam e se multipliquem por todos os rios.

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  6. Que assim seja! Salve São Francisco e viva o Velho Chico 🙌
    Parabéns e gratidão por compartilhar de forma tão especial as histórias destes locais sagrados, com admiração, Maya

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