ENTRE BELEZAS E ASSOMBROS: AS LIÇÕES DE UMA ILHA ENCANTADA NO SUL DO BRASIL


Quem está acompanhando as histórias dos sítios naturais sagrados do Brasil aqui no blog já deve ter percebido que esses lugares nem sempre estão associados a histórias bonitinhas. Lugares de energia intensa costumeiramente foram também palco de acontecimentos igualmente fortes. 
Esse é o caso do nosso capítulo de hoje, em que vamos embarcar rumo a uma pequena ilha rochosa do litoral de Santa Catarina, de 45 mil metros quadrados, situada no município de Governador Celso Ramos, conhecida pela singela alcunha de “Portal do Diabo” – a Ilha do Anhatomirim. 
Não se sabe exatamente porque os índios que habitaram essa região nomearam esse local de imensa beleza natural de Anhatomirim, nome de origem tupi-guarani que pode ser traduzido como “pequena ilha do mau espírito”. Mas essa origem parece profetizar os terríveis eventos que ali iriam acontecer ao longo dos séculos seguintes. 
Essa região, onde está também a atual capital do Estado, Florianópolis, foi um dos primeiros locais do sul do Brasil a ser ocupado pelos colonizadores europeus. E teve uma importância estratégica para a Coroa Portuguesa como ponto de apoio na disputa com a Espanha pelo domínio da região do Rio do Prata, que dá acesso à Argentina e o Uruguai. 
Para garantir sua defesa e marcar a posse territorial, foi construída na Ilha do Anhatomirim, entre 1739 e 1744, a Fortaleza de Santa Cruz, a primeira de um conjunto de quatro fortificações instaladas na região na mesma época, quando Desterro - primeiro nome dado à atual capital - era apenas um pequeno aglomerado de pescadores e lavradores. 
Conta-se que foi utilizado óleo de baleia para a junção das pedras que compõem as estruturas da fortaleza. E que, além de soldados, a construção empregou também mão de obra de negros e indígenas escravizados, grupos nem sempre lembrados nos registros sobre o local. 
Ao longo da história, a ilha do Anhatomirim e sua fortaleza fizeram parte da saga de diversas guerras, rebeliões e revoltas. Dotada de uma razoável artilharia bélica, conta-se que da ilha, entretanto, nunca foi disparado sequer um único tiro de canhão. 
Foi conquistada sem resistência por uma invasão espanhola em 1777, quando a maior armada que já atravessou o Atlântico (com 117 embarcações) ali chegou. Mas foi logo desocupada e retomada ao domínio português com a assinatura do Tratado de Santo Idelfonso, no mesmo ano. 
Na Revolução Federalista - guerra civil que ocorreu no sul do Brasil alguns anos após a Proclamação da República (1889) - um grupo de opositores ao governo, chamados de “maragatos”, iniciou uma luta armada contra os republicanos, apelidados de “pica-paus”. Os federalistas eram contrários à centralização do poder e à presença de oligarquias nos governos estaduais instituídas com o regime recém implantado, defendendo um modelo parlamentarista. 
Disputas sangrentas e recheadas de atos de selvageria como degola e castração dos inimigos atingiram três estados, culminando com a derrota dos federalistas. Nessa época, registra-se que mais de uma centena de presos políticos considerados inimigos da República foram fuzilados na Ilha do Anhatomirim, em 1894. Esse episódio, que ficou conhecido como “a chacina do Anhatomirim” [1], se soma a outros casos de execuções e enforcamentos que continuaram a ocorrer no local até a década de 1940, contribuindo para a fama da “ilha do diabo”. 
À propósito, foi por conta da vitória das tropas governistas que Desterro mudou de nome e se tornou Florianópolis, em homenagem ao “Marechal de Ferro”, então presidente do Brasil, que ordenou a guerra que culminou com o fim das revoltas no sul do país.
Além das funções militares e de posto de abastecimento e controle, Anhatomirim também funcionou como prisão, foi ponto de sinalização marítima (contando com um farolete com estrutura de ferro de 8 metros de altura), abrigou uma estação de rádio telégrafo, serviu como hospital para convalescentes, local de isolamento de doentes de febre amarela e outras doenças tropicais contagiosas e sanatório. 
Sua estrutura foi desarmada e desativada em 1937. No ano seguinte, o conjunto de edificações, já bastante deterioradas, foi tombado como Monumento Histórico Nacional. A área, no entanto, foi abandonada e a vegetação cobriu as ruínas. 
Apenas no início da década de 1970 teve início a restauração desse legado, que representa o maior complexo de arquitetura colonial portuguesa no sul do Brasil.
Em 1979 uma universidade assumiu a guarda e a tutela da ilha, inaugurando uma nova fase de recuperação e uso desse local, promovendo atividades de pesquisa e extensão, e incentivando a abertura da ilha para visitação pública, o que ocorreu em 1984. 
Envolta pelas águas claras e rasas da Baía dos Golfinhos e contando com uma rica fauna marinha – que inclui, além dos botos, peixes diversos, ouriços e estrelas do mar - a ilha tem atraído cada vez mais visitantes, chegando a 140 mil/ano em tempos recentes. 
A travessia até o local é feita em escunas de passeio que saem de diferentes pontos da região e exploram o imaginário popular envolvendo a beleza natural em histórias de encanto e magia, com direito a interpretação de piratas e a aparição de sereias. 

Conta-se que ali foi um dos primeiros lugares a desenvolver a prática do “sereísmo”, que se tornou popular também em outras regiões do Brasil. Segundo meu colega Heitor – que me instigou a pesquisar sobre essa ilha -, tudo começou com Ariel, uma jovem de cabelos ruivos que se tornou conhecida como a pequena sereia do Anhatomirim. E que depois de ficar famosa foi contratada para sereiar no Aquário de Santos, deixando, no entanto, algumas representantes locais que deram continuidade à atividade. 

Nos últimos anos, a região tem se tornado um modelo de gestão participativa, envolvendo pescadores, operadores de turismo e órgãos gestores ambientais e patrimoniais na construção de instrumentos de planejamento. Estuda-se também a inclusão da Ilha do Anhatomirim na lista de Patrimônio Mundial da UNESCO, junto ao Conjunto das Fortificações do Brasil, um reconhecimento da relevância desses espaços não apenas como lócus de história, mas de aprendizados importantes para compreender o passado, avaliar o presente e planejar o futuro [2]. 
O entusiamo e a alegria contagiante das atividades e iniciativas realizadas atualmente na Ilha do Anhatomirim em nada lembram o seu passado de revoltas, prisões, torturas e assassinatos, fazendo com que esses eventos pareçam algo distante e relegado aos livros de história.  
Essas marcas, no entanto, parecem ter ficado gravadas no território, não apenas nas paredes da fortaleza, mas também na memória coletiva sobre o local, onde são comuns relatos de assombros presenciados na ilha, envolvendo pessoas que afirmam ali ter ouvido vozes, barulhos e gemidos ou avistado vultos e fantasmas. 
As histórias giram especialmente em torno da chamada “Árvore dos Enforcados”, um araçazeiro com um círculo de pedras ao redor, palco principal da mística que envolve a ilha. 
Os “caça-fantasmas” existem na vida real - são chamados de demólogos, especialistas em detectar e trabalhar com maus espíritos. Eles têm sociedades formalizadas em diversos países do mundo, sendo reconhecidos até mesmo pelo Vaticano, que parece recorrer ocasionalmente aos seus serviços. 
Um deles esteve na Ilha do Anhatomirim alguns anos atrás e relata que teve uma de suas experiências mais marcantes ao pernoitar ali. Fazendo uso de seus conhecimentos e instrumentos, conta que ajudou a liberar inúmeros fantasmas que perambulavam pelo local, atormentados e vitimados por crueldades que ocorreram no passado, e que precisavam apenas de uma prece ou lembrança para serem encaminhados a outros planos da existência [3].
A memória de tais acontecimentos perturbadores pode trazer medo e apreensão. Mas a história mostra que, a nível coletivo, a comoção gerada com acontecimentos drásticos funciona, muitas vezes, como oportunidade de revisão de valores, evolução e correção dos rumos de uma sociedade. 
Todos enfrentamos batalhas ao longo da vida e também no campo individual as tragédias e dificuldades são grandes mestres, ensinando importantes lições sobre o que realmente importa e tem significado na nossa existência. 
Histórias como a da Ilha do Anhatomirim ensinam que é preciso enfrentar as feridas deixadas pelas velhas batalhas do passado para entendermos o presente e estarmos preparado e atentos frente as novas aventuras e possibilidades do futuro. E que todo passado de dor e drama pode ser ressignificado dando lugar a uma nova história de beleza e esperança!

Érika Fernandes Pinto
Pirassununga, 22 de outubro de 2019.


Fontes e notas: 
[1] Episódio da série “Histórias Extraordinárias” da RBS TV de Porto Alegre. 
[2] Livro Novas (velhas) batalhas: educação patrimonial no contexto de fortificações brasileiras, do IPHAN.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Fortaleza_de_Santa_Cruz_de_Anhatomirim

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