ENIGMAS ARQUEOLÓGICOS E O "SAFADISMO" NA ILHA DA MAGIA


Na região sul do Brasil, no litoral do Estado de Santa Catarina, a capital Florianópolis, conhecida como “ilha da magia”, é famosa pelos seus encantos e belezas naturais. Poucos sabem, porém, que ela congrega também um dos mais ricos acervos arqueológicos do planeta, com mais de 65 sítios rupestres registrados.
Essa ilha guarda também algumas formações enigmáticas, desconhecidas do público geral, pouco compreendidas e polêmicas no meio científico - os chamados monumentos megalíticos
São conjuntos de blocos rochosos (megálitos) que podem incluir menires -  pedras únicas de forma alongada fixadas verticalmente - e dolmens - pedras horizontais colocadas sobre pedras verticais -, dispostos em linhas ou círculos chamados de cromeleques

Quem acompanhou a série francesa de histórias em quadrinhos Asterix deve lembrar do seu melhor amigo, Obelix, dotado de uma força sobre-humana depois de cair em um caldeirão de poção mágica druida quando criança. 
E que além de se divertir atacando legiões romanas e comendo javalis assados, exercia a atividade de escultor e distribuidor de menires.

Cena de Outlander em meio a conjunto de pedras megalíticas.
Em uma das minhas séries favorita do Netflix, Outlander, é em meio a um desses círculos de pedras, reduto de rituais sagrados, que a protagonista atravessa a fronteira do tempo e vai parar na Idade Média, vivendo uma história fantástica (super recomendo).

Para além das histórias de ficção, essas formações são encontradas em diversas partes do mundo, consideradas vestígios de civilizações antigas, datadas de mais de 5 mil anos. 
Há diversas teorias para explicar sua origem e significado, em geral atribuído a uso cerimonial, fúnebre ou de marcação de território. Mas elas permanecem cercadas de lendas, mistérios e polêmicas no meio acadêmico, sobre serem formações naturais (resultantes de erráticas glaciares) ou erigidas intencionalmente por sociedades humanas. 

Fonte: IMMA
Mas é fato que muitos desses monumentos conformam alinhamentos astronômicos perfeitos, emoldurando, por exemplo, o ponto exato do nascer do sol nos solstício e equinócios ou marcando a passagem de estrelas e constelações, o que indica que seriam observatórios e marcadores de calendários celestes de sociedades humanas ancestrais. 
Estudos também mostraram que alguns deles são feitos de pedras de várias toneladas deslocadas por quilômetros dos seus locais de origem. 
Para os arqueoastrônomos, os monumentos megalíticos são fruto de conhecimentos matemáticos, físicos e astronômicos milenares e saberes secretos sobre as grades de circulação de energia planetária, as chamadas Ley Lines. Eram utilizados para práticas ritualísticas e religiosas, sendo considerados, portanto, como lugares sagrados. 

Muitos brasileiros já ouviram falar ou até viajaram para conhecer lugares como Stonehenge, na Inglaterra – o monumento megalítico mais famoso do mundo -, desconhecendo, entretanto, que formações desse tipo existem bem aqui, no nosso quintal. 
No litoral de Santa Catarina, por exemplo, desde 1918, vários monumentos foram descritos pelo geólogo Vieira da Rosa. Em tempos mais recentes, algumas pessoas vem despertando para a importância desses sítios, se dedicando a registrar e proteger essas áreas. 
Adnir Ramos – o pescador que virou pesquisador - é um deles. Nativo da Fortaleza da Barra da Lagoa, em Florianópolis, ele conta que teve sua curiosidade despertada quando, ainda na década de 1980, se deparou com uma pintura rupestre em uma pedra de difícil acesso enquanto pescava no Costão da Galheta, o que o levou a se questionar sobre quem e por que tal obra havia sido feita. 
Começou a estudar o assunto e, anos depois, fundou o Instituto Multidisciplinar do Meio Ambiente e Arqueostraonomia – IMMA, encabeçando um movimento pioneiro pelo reconhecimento dos monumentos megalíticos como bens de importância natural e cultural no Brasil. 
O IMMA promove atividades de conscientização sobre a importância desse patrimônio e visitas guiadas a alguns desses sítios que são verdadeiras iniciações a um universo mágico de conhecimentos profundos associados a muitos encantos e belezas. 

No livro “Divino Gênese”, publicado recentemente, Adnir compartilha sua história de mais de três décadas dedicadas a registrar e interpretar essas formações, descobrindo seus alinhamentos e interligações com outras formações similares espalhadas pelo mundo. 

Outro pesquisador que também descobriu essas formações na década de 1980 é Keler Lucas, autor do livro “Arte Rupestre em Santa Catarina”, publicado em 1996, e que se tornou um clássico ao registrar boa parte dos monumentos e pinturas ruprestes do estado. 
Famoso internacionalmente e convidado de honra em eventos mundiais sobre a temática, Keler conta que segue sendo desprezado pela academia científica no Brasil, consequência de uma ciência formal que não reconhece que “existem mais coisas entre o céu e a terra do que julga a nossa vã filosofia”.
A questão central da controvérsia se dá pelo fato dos monumentos megalíticos remeterem a civilizações antigas sobre as quais pouco se conhece. Que utilizavam tecnologias e conhecimentos muito superiores ao que se considera como legado dos chamados “povos pré-históricos ou primitivos” (os povos dos sambaquis), desafiando a historiografia oficial, o que faz com que eles não sejam reconhecidos plenamente pela arqueologia brasileira, nem protegidos por lei. 
Como consequência, muitos deles já foram perdidos, suplantados pela ocupação urbana ou obras de infraestrutura, sem que seu valor histórico e cultural chegassse a ser sequer considerado.
Em fevereiro de 2019 tive a oportunidade de conhecer com esses dois estudiosos e guardiões dos monumentos megalíticos em um evento em Florianópolis, em que fui convidada a falar sobre os sítios naturais sagrados, meu tema central de estudo. O encontro foi promovido pelo Instituto ÇaraKura no Espaço AVIVA, na parte leste da ilha, que inclui na sua área um expressivo conjunto desses monumentos. 
Eles se encontram na estreita faixa de restinga no caminho que interliga duas das mais belas praias da ilha - a Galheta e a Mole. Estão em meio a uma área remanescente de Mata Atlântica, com morros e dunas, que se manteve razoavelmente bem preservada ao longo dos anos, sendo utilizada apenas por pescadores artesanais, surfistas e naturistas - prática autorizada na região por uma lei municipal instituída na década de 1990. 

Vista geral do conjunto de monumentos megalíticos entre a Galheta e a Mole, a partir da praia.

Nos últimos tempos, no entanto, ela vem sendo ameaçada por construções irregulares e aumento do fluxo turístico desordenado. A região tem se tornado famosa pela promoção de festas raves voltadas para o público GLS. Elas ocorrem em um local próximo aos monumentos, que acabam servido como “banheiro público e motel popular".  O desconhecimento da importância dessas áreas favorece o seu mau uso. 
O naturismo segue um estrito código de ética propagado pela sua Federação Brasileira, que defende, além do respeito entre todos e um modo de vida em harmonia com a natureza, o cuidado com o meio ambiente. 
A grande quantidade de embalagens de preservativos e outros resíduos deixados como lixo no local, contraria essas regras de conduta, no que alguns participantes do evento chamaram de “safadismo”, ao invés de naturismo, o que não encontra amparo legal. 
Além dos resíduos acumulados, o acesso desordenado forma “caminhos de rato” que impactam a vegetação nativa e espécies raras da fauna e da flora que ali ocorrem. A área faz parte de uma unidade de conservação municipal, mas que carece ainda de estrutura para sua implementação e gestão.


Segundo Adnir, muitos monumentos megalíticos estavam relacionados com festividades e rituais de fecundidade e fertilidade, quando se celebrava ciclos de plantios e colheitas agrícolas. 
Envoltos nessa teia de energia, estimulariam os impulsos reprodutivos e sexuais - o que pode explicar a "atratividade especial” dos monumentos megalíticos da Galheta para essas práticas. 
Há que se considerar, porém, que elas podem ser exercidas com responsabilidade e que dá para se divertir sem deixar marcas nos ambientes naturais.
Como lendas também são criadas, sugeri, entre risos da plateia, que uma possível medida mitigadora para proteger esse lugar sagrado poderia ser espalhar uma história na região de que quem desrespeita o local pode sofrer consequências de não mais conseguir “sustentar” as energias por ele emanadas, se é que vocês me entendem...

Brincadeiras à parte, o fato de existirem pessoas e organizações da região preocupadas com o reconhecimento, a proteção e a valorização desse patrimônio é um excelente sinal. 
Hans, o proprietário da área contígua aos monumentos, por exemplo, abandonou um projeto de construção de um resort de luxo para consagrar o espaço a honrar as tradições ancestrais que deram origem ao povo brasileiro – a indígena, a negra e a portuguesa , dedicando-se a promover eventos, cursos e outras atividades que remetem à reconexão da sociedade com a sacralidade da natureza. 

Érika com Keler, Hans e Adnir na Praia da Galheta, depois de uma visita aos monumentos megalíticos da região.

As civilizações ancestrais cultuavam a natureza como divindade e mantinham um profundo respeito pela Mãe Terra. Realizar cerimônias em lugares sagrados era uma forma de agradecer ao cosmos e aos deuses pela fartura e dádivas da vida. 
Com cânticos, preces e danças, as forças da natureza eram invocadas a partilharem o seu poder, e cabia aos seres humanos depois retribuir e louvar, agradecendo pelas bênçãos concedidas. 
Tradições que foram esquecidas por grande parte da nossa sociedade, mas que se mantém vivas nas culturas de muitos povos indígenas e originários do Brasil e do mundo. 
E que vem sendo redescobertas e ressignificadas por guardiões modernos dos lugares sagrados, que reconhecem essa herança e os sacrifícios que os povos antepassados fizeram para nos permitir chegar até aqui. 

Quando um conjunto de pessoas se une em prol de uma causa comum, fortalecendo laços de solidariedade, verdadeiros milagres se tornam possíveis! 
Os monumentos megalíticos nos lembram de que é preciso transcender a individualidade em prol do cuidado com o coletivo. Não porque há regras ditadas por códigos de conduta moral ou normas legais, mas pela convicção de que toda a vida é sagrada e de que a abundância está sempre presente quando as relações com todos os seres são honradas. 

Que histórias como essa possam nos lembrar de agradecer por todas as riquezas que nos são concedidas e de partilhá-las com os demais, abrindo mais momentos em nossas vidas em que, independentemente de qualquer religião, honramos e louvamos o Grande Mistério. 

Obrigada Adnir, Keler e Hans pela ousadia e inspiração.
E a Andréa e todo o pessoal do Instituto ÇaraKura, pelo lindo trabalho que realizam.

Érika Fernandes Pinto

De Lima/Peru, 14 de outubro de 2019. 



Para saber mais: 
IMMA https://arqueoastronomia.com.br

Acompanhe mais histórias sobre sítios naturais sagrados do Brasil no blog snsbrasil.blogspot.com e no Instagram @snsbrasil
Para mais informações e contato (61) 981041130 (@erikafernandespinto)

Comentários

  1. Como de hábito, um passeio delicioso pelo conhecimento! Amei a menção ao Obelix, personagem de quem sempre gostei muito, com sua mistura de força e ingenuidade. Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Muito legal e enriquecedor, a ilha da magia como sempre com seus mistérios

    ResponderExcluir
  3. Simplesmente maravilhado com o que aprendi. Texto simplesmente delicioso e maravilhoso!!!!!!

    ResponderExcluir
  4. Maravilha!!!
    Adorando essa série de reportagene😎

    ResponderExcluir

Postar um comentário